Alguém já afirmou que não se come ideologia. É verdade. Mas também é verdade que se come mais ou menos, conforme a ideologia dominante numa sociedade.
Actualmente, o neoliberalismo dominante em todo o mundo vai fazendo com que cada vez menos gente tenha a pança a abarrotar e cada vez mais gente passe fome. Os números sobre a crescente desigualdade da repartição dos rendimentos chegam todos os dias ao nosso conhecimento, para desespero de muitos.
Também a democracia não se come mas é através deste sistema que se conseguem atenuar desigualdades sociais e fazer com que cada vez menos pessoas passem fome e sofram outras carências da mais variada ordem.
Em Portugal, como em qualquer parte do mundo, as populações acreditam na democracia porque isso lhes traz bem-estar e segurança, expressos, em particular, através do Estado Social. Se se acabar com o Serviço Nacional de Saúde, a escola pública, as reformas, o subsídio de desemprego e outros apoios sociais, isso é mais de meio caminho para as pessoas deixarem de acreditar na democracia, seja qual for a forma de participação dos cidadãos na vida do Estado. Para mais, com o descrédito que está a atingir a vida política, numa altura em que o cidadão comum é espremido até ao tutano, sem receber nada em troca, que reacção poderemos esperar em relação ao regime democrático?
Este é o tema de fundo da coluna de Daniel Oliveira no Expresso de ontem.
O GRANDE CISMA
Não há um “cisma grisalho”. O Governo está a massacrar os reformados ao mesmo tempo que massacra todos os restantes cidadãos. Apenas se dá o caso de o dinheiro das reformas estar nas suas mãos e, quando é impossível aumentar mais os impostos, os reformados e pensionistas transformam-se na presa mais fácil. Não estando no ativo, a única arma que lhe resta é o voto. E Passos Coelho não espera ser reeleito. Se levar este mandato até ao fim já será uma sorte. O CDS, pelo contrário, está assustado com os efeitos eleitorais deste ataque. Tenta por isso explorar outro suposto “cisma”: entre funcionários públicos e aposentados, de um lado, e trabalhadores do privado e reformados, do outro. Também este “cisma” já teve melhores dias. Com todos a levar paulada, começa a ser difícil olhar para o vizinho do lado e ver um privilegiado. Na realidade, nunca o país esteve tão unido na sua própria desgraça.
Os países pobres têm na solidariedade informal entre gerações a sua principal almofada social. Os pais ajudam os filhos até bastante tarde e cuidam dos netos, esperando que, no fim da vida, os filhos tratem deles. Por mais que a modernização do país e a crise demográfica tenham abalado esta solidariedade ancestral, ela continua bem presente. É por isso que o ataque aos reformados é um ataque a todas as gerações. Porque retira pilares às fundações dessa solidariedade. O cisma que se está a criar não é entre gerações, é entre os cidadãos e o Estado. Se os jovens veem os pais e avós a ficar, aos poucos, sem as suas reformas, deixam de acreditar que as vão receber no futuro. Perdida essa relação de confiança com o Estado, farão tudo para não financiar uma segurança social que não lhes vai socorrer. Tratam, como acontece nos países subdesenvolvidos, da coisa apenas em família.
Num país pobre são as funções sociais do Estado que alimentam a confiança dos cidadãos nas instituições. Se o Estado deixa de garantir educação, saúde e reformas essa confiança quebra-se. E sem confiança nas instituições do Estado não há confiança na democracia. Em Portugal, o que põe em perigo a nossa democracia não são os vários cismas que se vão inventando. É a incompreensão das pessoas comuns de quais sejam as suas vantagens. A democracia não se reforçou nos últimos 40 anos, pela sua bondade intrínseca. Reforçou-se porque se traduziu numa segurança acrescida para a maior parte da população. Quando as pessoas deixarem de acreditar que ela lhes garante isso, desistem. E não precisa vir nenhuma ditadura para ela morrer. Basta que os cidadãos deixem de dar crédito a qualquer governo, passado, presente ou futuro. É exatamente a este ponto que estamos a chegar.
É por isso que me entusiasmam pouco, neste momento, todas as propostas mais ou menos bem intencionadas de reforma do sistema político. A regeneração de uma democracia num país em crise depende pouco dos modelos de participação dos cidadãos na vida do Estado. Depende mais da utilidade que estes vejam no próprio Estado e nas suas instituições. Sem escola pública, sem SNS e sem reformas a maioria apenas quererá que o Estado e os eleitos para o dirigir não a aborreçam. Se o Estado não participa na sua vida, ela não participará na vida do Estado. Sejam quais forem as formas de participação que lhe forem oferecidas.
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