A recente intervenção do Presidente da República sobre a suposta intervenção
da Nossa senhora de Fátima a propósito do resultado da sétima avaliação da
troika está dentro do tipo de dislates com que Cavaco Silva nos tem
presenteado, em especial, neste seu segundo mandato. Mas a parte mais
lamentável da leitura destes casos é chegarmos à conclusão de que a situação política
que actualmente vivemos em Portugal parece ter chegado a um impasse. É que,
para além de constatarmos todos os dias o incorrigível desnorte do Governo, facilmente
se percebe que não temos um Presidente da República capaz de tomar as decisões
mais consentâneas com a embrulhada em que o país se viu envolvido. Está, pois, a
criar-se a ideia de que na instituição Presidência da República, em vez de se
procurar a solução, encontramos mais um problema. A partir daqui há um “pormenor”
que não devemos deixar passar em claro – tem havido um considerável pudor nos
comentários às tolices provenientes do “ocupante do Palácio de Belém” como se a
um Presidente da República tivessem de ser permitidas todas as espécies de
enormidades.
Com a qualidade que se lhe reconhece, José Vitor Malheiros coloca o
dedo na ferida, de forma contundente, no texto que assina no Público de ontem e
de onde extraímos o seguinte:
O que é espantoso é que parece ter-se instalado o
consenso sobre Cavaco Silva: todos o tratam como tratariam o idiota da aldeia,
com paciência e benevolência, às vezes com um sorriso de comiseração, sem
esconder aqui e ali um lampejo de irritação, mas garantindo-lhe sempre a
inimputabilidade que os costumes, a moral e a lei concedem aos pobres de
espírito.
Cavaco deixou, pura e simplesmente, de ser (e de poder
ser) levado a sério. Uma referência a Cavaco no meio de uma conversa é,
forçosamente, um convite à mofa e aos gracejos. O que é grave, já que lhe cabem
deveres de garantia do funcionamento das instituições democráticas que ele é,
assim, absolutamente incapaz de cumprir, seja através de intervenções públicas
ou de lanches privados. O que é grave, porque vivemos um momento de emergência
nacional, de catástrofe social, de submissão a interesses estrangeiros e de
traição aos portugueses que exigiriam a intervenção de um chefe de Estado.
Não é a simples referência a Nossa Senhora de Fátima
que é surpreendente - Paulo Portas acreditava que a maré negra do petroleiro
"Prestige" se tinha desviado da costa portuguesa devido a "uma
intervenção de Nossa Senhora" -, nem o facto de que Cavaco Silva não tenha
percebido que, como chefe de Estado de uma república laica, se deve abster de
propaganda das suas crenças pessoais, nem sequer o facto de o Presidente
manifestar tão débil confiança na sua autoridade que quis desculpar a tirada
atribuindo a justificação milagreira à lavra da sua consorte. Mas há uma
questão política que subjaz às declarações do Presidente da República:
aparentemente (o que surpreende, atendendo a outras declarações suas), Cavaco
Silva considera que a troika se
tornou uma bênção de tal prodigalidade que apenas pode ser explicada por causas
sobrenaturais, qual maná celestial. A imagem poderia ser compreendida - e muito
mais pessoas gritariam "milagre" - se a troika decidisse perdoar-nos a dívida. Mas não foi isso que
aconteceu. Esta aura divina de que o PR reveste a decisão dos nossos principais
credores pode dever-se ao facto de Cavaco Silva estar a ser envenenado com uma
substância hipnótica espalhada nas torradas mas, com hipnose ou sem ela, o PR
parece considerar um sacrilégio que os portugueses pensem ou façam qualquer
outra coisa que não nasça desta troika
de três cabeças. Seria mais compreensível e certamente mais patriótico que
Cavaco sonhasse que a troika
não é mais do que a forma humana, mal disfarçada, do cão de três cabeças que
guarda os infernos. Mas imaginar que eles são os serafins favoritos da Virgem
Maria é pornográfico.
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