A propósito da sessão
pública “2 anos de troika – Libertar Portugal
da Austeridade” que tem lugar esta noite na Aula Magna, o Prof. Boaventura Sousa Santos, director do Centro
de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra reflecte no Público de hoje sobre
as razões do que se está a passar na sociedade portuguesa para que seja
possível juntar “personalidades, actores políticos e organizações”, colocando
de lado conhecidas e antigas divergências, no sentido de convergirem em acções
de luta contra o Governo e as políticas de austeridade que estão a destruir o
país.
Um Manifesto de Mudança
Muitos se perguntam sobre o que
se está a passar na sociedade portuguesa para que personalidades, actores
políticos e organizações sociais estejam a pôr de lado as suas divergências
para se juntarem em acções de luta contra o actual Governo e as suas políticas
da austeridade. As razões são várias e os níveis de convergência são diversos,
o que significa que a força desta convergência talvez resida em criar condições
para redefinir as divergências democráticas num novo ciclo político que se
aproxima. Eis algumas das razões.
O novo antifascismo.
A democracia portuguesa está suspensa porque as decisões políticas que afectam
mais decisivamente os cidadãos não decorrem de escolhas destes nem respeitam a
Constituição. Estalou um conflito fundamental entre os direitos de cidadania e
as exigências dos "mercados" financeiros, e esse conflito está a ser
decidido a favor dos "mercados". As decisões formalmente democráticas
são substantivamente imposições do capital financeiro internacional para
garantir a rentabilidade dos seus investimentos, tendo para isso ao seu serviço
as instituições financeiras multilaterais, o Banco Central Europeu, a Comissão
Europeia, o euro e os Governos nacionais que se deixaram chantagear. Ao
contrário do fascismo histórico, o actual fascismo financeiro, em vez de
destruir a democracia, esvazia-a de qualquer força para lhe poder fazer frente
e transforma-a numa monstruosidade política: um Governo de cidadãos que governa
contra os cidadãos; o Governo legitimado pelos direitos dos cidadãos que se
exerce violando e destruindo esses direitos. A defesa da democracia real exige
uma união do tipo daquela que uniu as forças antifascistas que tanto lutaram
pela democracia que tivemos até há pouco e que conquistámos há menos de 40
anos. Porque o fascismo é diferente, são também diferentes as formas de luta.
Mas o que está em causa é o mesmo: construir uma democracia digna do nome.
Da alternância à alternativa.
A crise financeira de 2008 significou o fim do que no pós-guerra se
convencionou chamar "capitalismo democrático", uma convivência sempre
tensa entre os interesses dos investidores em maximizar os seus lucros e os
interesses dos trabalhadores em ter salários justos e trabalho com direitos. A
convivência resultou de um pacto por via do qual os trabalhadores renunciaram
às reivindicações mais radicais (o socialismo) em troca de concessões do
capital (tributação e regulação) que tornaram possível o Estado social ou de
bem-estar. Este pacto começou a entrar em crise logo nos anos setenta do século
passado mas colapsou definitivamente com a crise de 2008, não só pelo modo como
a crise ocorreu, mas pelo modo como foi "resolvida": a favor do
capital financeiro que a tinha criado, o qual, em vez de punido e regulado, foi
resgatado e libertado para repor rapidamente a sua rentabilidade e os bónus dos
seus agentes. Os partidos políticos com vocação de governo distinguiram-se no
pós-guerra pelo modo como geriram o pacto. Nisso consistiu a alternância. Desde
2008 tal pacto deixou de existir e por isso a alternância deixou de fazer
sentido. Em Portugal, a assinatura do memorando da troika selou o fim do pacto e da alternância que fazia dele um
pacto democrático. A partir de agora, em vez de alternância, é necessário
buscar uma alternativa. As divergências no interior da coligação do Governo
nada têm a ver com a alternativa e mostram que a alternância à alternância (com
os mesmos partidos ou com algum deles e o PS) seria a reprodução, em forma de
farsa, da tragédia que vivemos. A alternativa implica decidir entre a lógica do
capitalismo financeiro e a lógica da política democrática. Neste momento, as
duas lógicas são inconciliáveis. Os democratas portugueses convergem na ideia
de que a democracia deve prevalecer e sabem que para que tal ocorra são
necessários actos de desobediência às exigências dos "mercados", o
que certamente vai envolver alguma turbulência social e política, cujos custos
devem ser minimizados. Acima de tudo haverá que enfrentar a intimidação e a
manipulação do medo, os drones
com que os "mercados" destroem sem custos os direitos dos cidadãos. A
desobediência pode assumir várias formas mas todas envolvem assumir que a
dívida, tal como existe, é impagável; e injusta, porque não se pode liquidar um
país para liquidar uma dívida. A opção pela democracia é a alternativa mas o
modo de a levar à prática não é unívoco, tal como nada é unívoco em democracia.
Ou seja, a alternativa contém em si alternativas. E aqui surgem as divergências
que vão definir o novo ciclo político.
A Europa real e a Europa ideal.As
divergências incidem em três temas: articular ou não a desobediência ao capital
financeiro com a permanência no euro; centrar os esforços em renegociar a
posição na UE ou em abrir a novos espaços e parceiros geopolíticos; dado que o
fim desta UE é uma questão de tempo, lutar ou não por uma outra inequivocamente
sujeita à lógica da democracia. Como é próprio de uma transição de paradigma,
todas as posições envolvem riscos e nem sempre será fácil calculá-los. Mas
mesmo nas divergências há alguma convergência: a actual UE está totalmente
colonizada pela lógica dos "mercados"; o aprofundamento da integração
em curso está a ser feito à custa das democracias da Europa do Sul; seria
melhor que as posições de desobediência fossem tomadas por vários países
articuladamente.
A luta política extra-institucional.
Os partidos políticos de esquerda são os mais tímidos
neste processo de convergência porque têm demasiados interesses investidos no
actual ciclo político e temem pelo seu futuro. Têm dificuldade em admitir que,
se não assumirem riscos, estão condenados a ser o verniz democrático das unhas
do fascismo financeiro. O dilema que enfrentam é sério: se acompanharem o
movimento social que aponta para um novo ciclo democrático, podem estar a
cometer suicídio; se não o acompanharem, serão vistos como parte do problema
que enfrentamos e não como parte da solução, correndo o risco de, no melhor dos
casos, se tornarem irrelevantes, o que é outra forma de suicídio. Perante este
dilema, que todos devemos compreender, os cidadãos e as cidadãs não têm outro
remédio senão vir para a rua reclamar a queda do Governo e forçar os partidos
de esquerda e centro-esquerda a assumir riscos, ajudando a minimizar os custos
sociais e políticos da turbulência política que se aproxima sem olhar a
cálculos partidários. Estamos talvez a entrar num momento forte de democracia
participativa, servindo de fonte de revitalização da democracia representativa.
Das instituições que sobrevivem à suspensão da democracia os democratas
portugueses apenas têm alguma esperança no Tribunal Constitucional. Pelo
respeito que lhes merece a instituição da Presidência da República, preferem
nada dizer sobre o seu actual locatário.
Sem comentários:
Enviar um comentário