Muitas vezes a melhor forma de fazer chegar aos principais interessados uma mensagem política importante, em vez de se arranjar um arrazoado pesado, o recurso ao humor é muito mais eficaz. Só que, satirizar uma situação política não está ao alcance de qualquer. Ricardo Araújo Pereira é mestre na arte de fazer humor sob várias formas. Na Visão presenteia-nos todas as semanas com o que de melhor se faz em Portugal em modelo escrito. Esta semana, o seu alvo foi Paulo Portas.
Elogio da loucura
Quando, como acontece agora, o mundo está todo ao contrário, a voz da razão é a dos idiotas. Como é evidente, estes são tempos gloriosos para mim. Que o mundo está de pernas para o ar, julgo que ninguém contesta: despedir em massa é coragem, roubar salários e pensões passa por sensatez, insistir em medidas que comprovadamente não resultam é determinação, falhar todas as previsões revela competência. O Governo tenta legislar, violando a lei. Um comentador convoca o Conselho de Estado e o Presidente confirma. Parte do Governo propõe uma coisa à Sexta-feira e outra parte propõe o contrário ao Domingo. Um ministro aceita uma medida que tinha considerado absolutamente inaceitável. O Governo apresenta a medida mas, em princípio, não quer aplicá-la.
Tendo em conta que, por defeito profissional, prefiro o caos à ordem, a loucura à sensatez e o absurdo à lógica, vejo-me obrigado a apoiar o Governo – muito contra a minha vontade. O cuidado que Paulo Portas tem posto em delimitar limites que não devem ser ultrapassados para depois os ultrapassar é, para mim, admirável. As suas palavras exactas foram: “Num país em que grande parte da pobreza está nos mas velhos e em que há avós a ajudar os filhos e a cuidar dos netos, (…) creio que é a fronteira que não posso deixar passar.” Poucos dias depois, passava a fronteira. Mais ou menos clandestinamente, porque se recusava a admitir que tinha passado a fronteira mas passava. Passava a fronteira a salto, como antigamente. E acaba por ser estranho que um homem que é ministro dos Negócios Estrangeiros tenha tantas dificuldades em guardar as fronteiras. Julgo que se criou um espaço Schengen nas fronteiras que Paulo portas impôs à austeridade grotesca: as medidas passam todas. Há liberdade de circulação de medidas recessivas nas fronteiras de Portas. Por outro lado, as fronteiras de Paulo Portas eram tão ideológicas quanto morais. Era a consciência democrata-cristã que não podia deixar passar os cortes nas reformas. Ou seja, nem o facto de ter deixado passar uma medida que, se alguém descobrir, não se sabe bem como, um modo de gerar poupança idêntica, não será aplicada, o redime. Porque um cristão não peca apenas por actos. Também peca por palavras e pensamentos. Esta medida pode nunca chegar a ser um acto, mas é composta por palavras, e exprime um pensamento – embora enjeitado. O CDS já pecou, quer queira quer não. A expiação, em princípio, faz-se no confessionário e nas urnas. E o número de votos é capaz de ser inversamente proporcional ao número de padres nossos que Paulo Portas vai ter de rezar.
Sem comentários:
Enviar um comentário