Com um currículo notável, o Prof.
Boaventura Sousa Santos (BSS) é um profundo conhecedor da realidade mundial,
com especial incidência a que se refere à América Latina. Como se sabe, a sua
área de conhecimento é a sociologia sobre cujo tema tem uma vasta obra
publicada, a par da docência que exerceu em Portugal e noutros países de que há
a destacar os EUA.
Tal como tem acontecido com muitos outros
vultos portugueses do saber, o reconhecimento internacional que granjeou ao
longo dos anos não é o mesmo que goza no seu país. Infelizmente, a nossa
história é muito pródiga em exemplos destes. O nosso atraso tem, muito
provavelmente, a ver com a forma como desprezamos os nossos melhores. As
esferas do poder são implacáveis perante todos aqueles que não se vergam aos
seus ditames.
A quarentena que atualmente se vive a nível
global é o tema do artigo de opinião que BSS assina no “Público” de hoje com o
título A sul da quarentena, cuja
leitura recomendamos vivamente. O sociólogo seleciona “alguns coletivos sociais”
entre os mais vulneráveis que “constituem a maioria da população
mundial” para dissertar sobre a forma como são
atingidos pela quarentena.
A quarentena não só torna mais visíveis,
como reforça, a injustiça, a discriminação, a exclusão social e o sofrimento
injusto que elas provocam. Acontece que tais assimetrias se tornam mais invisíveis
em face do pânico que se apodera dos que não estão habituados a ele. São muitos
os grupos para os quais a quarentena é particularmente difícil. Têm em comum
ter uma especial vulnerabilidade que precede a quarentena e se agrava com ela.
No seu conjunto, estes colectivos sociais constituem a maioria da população
mundial. Selecciono uns poucos.
As mulheres. A quarentena será particularmente
difícil para as mulheres e, nalguns casos, pode mesmo ser perigosa. As mulheres
são consideradas “as cuidadoras do mundo”, dominam na prestação de cuidados
dentro e fora das famílias. Dominam em profissões, como enfermagem ou
assistência social, que estarão na linha da frente da prestação de cuidados a
doentes e idosos dentro e fora das instituições. Não se podem defender em
quarentena para garantir a quarentena de outros. São elas também que continuam
a ter a seu cargo, exclusiva ou
maioritariamente, o cuidado das famílias. Postas em quarentena,
poderia imaginar-se que havendo mais braços em casa as tarefas poderiam ser
mais distribuídas. Suspeito que assim não será, em face do machismo que impera
e quiçá se reforça em momentos de crise e de confinamento familiar. O aumento
do número de divórcios em algumas cidades chinesas durante a quarentena pode
ser um indicador do que acabo de dizer. Por outro lado, é sabido que a
violência contra as mulheres tende a aumentar em tempos de guerra e de crise –
e tem vindo a aumentar agora. O confinamento das famílias em espaços exíguos e
sem saída pode oferecer mais oportunidades para o exercício
da violência contra as mulheres. O jornal francês Le Figaro noticiava
em 26 de Março que as violências conjugais tinham aumentado 36% na semana
anterior em Paris.
Os trabalhadores precários, informais,
ditos autónomos. Depois de 40 anos de ataque aos direitos dos trabalhadores em todo o mundo
por parte das políticas neoliberais, este grupo de trabalhadores é globalmente
dominante, ainda que sejam muito significativas as diferenças de país para
país. O que significará a quarentena para estes trabalhadores, que tendem a ser
os mais
rapidamente despedidos sempre que há uma crise económica? No dia 23
de Março, a Índia declarou a quarentena por três semanas, envolvendo 1,3 mil
milhões de habitantes. Considerando que, na Índia, entre 65% e 70% dos
trabalhadores pertencem à economia informal, calcula-se que 300 milhões de
indianos ficaram sem rendimentos. Na América Latina, cerca de 50% dos
trabalhadores trabalham no sector informal. Em África, por exemplo, no caso do
Quénia ou Moçambique, a maioria dos trabalhadores é informal. As recomendações
da OMS parecem ter sido elaboradas a pensar numa classe média que é uma
pequeníssima fracção da população mundial. O que significa a quarentena para
trabalhadores que ganham dia-a-dia para viver dia-a-dia? Arriscarão desobedecer
à quarentena para dar de comer à sua família? Morrer de vírus ou morrer de
fome, eis a opção. Noutros contextos, os uberizados da economia informal
entregam comida e encomendas ao domicílio. São eles que garantem a quarentena
de muitos, mas para isso não se podem proteger com ela. O seu “negócio” vai
aumentar tanto quanto o risco.
Os moradores nas periferias pobres das
cidades, favelas, barriadas, slums, caniço, etc. 1,6 mil milhões de pessoas não têm
habitação adequada e 25% da população mundial vive em bairros informais sem
infra-estruturas nem saneamento básico, sem acesso a serviços públicos, com
escassez de água e de electricidade. Vivem em espaços exíguos onde se aglomeram
famílias numerosas. Dadas as condições de habitação, poderão cumprir as regras
de prevenção recomendadas pela OMS? Poderão manter a distância interpessoal nos
espaços exíguos de habitação onde a
privacidade é quase impossível? Poderão lavar as mãos com frequência
quando a pouca água disponível tem de ser poupada para beber e cozinhar? Muitos
destes bairros são hoje fortemente policiados e por vezes sitiados por forças militares sob o pretexto
de combate ao crime. Não será esta, afinal, a quarentena mais dura para estas
populações? Os jovens das favelas do Rio de Janeiro, que sempre foram
impedidos pela polícia ou pelos transportes de ir ao domingo à praia de
Copacabana para não perturbar os turistas, não sentirão que já viviam em
quarentena? Qual a diferença entre a nova quarentena e aquela que foi sempre o
seu modo de vida? Em Mathare, um dos bairros periféricos de Nairobi, Quénia,
68.941 pessoas vivem num quilómetro quadrado. Tal como em muitos contextos
similares no mundo, as famílias partilham uma sala que também é cozinha, quarto
e sala de estar. Como é que se lhes pode pedir auto-isolamento?
Para os moradores das periferias pobres
do mundo, a actual emergência sanitária vem juntar-se a muitas outras
emergências. Segundo nos informa a Garganta Poderosa, um dos mais
notáveis movimentos sociais de bairros populares da América Latina, os
moradores enfrentam várias outras emergências. É o caso da emergência sanitária
decorrente de outras epidemias ainda não debeladas e da falta de atenção
médica. Neste ano foram já registados 1833 casos de dengue em Buenos Aires. Só
na Villa 21, um dos bairros pobres de Buenos Aires, registaram-se 214 casos.
“Por coincidência”, na Villa 21 70% da população não tem água potável. É o caso
também da emergência alimentar: os modos comunitários de superar a fome que
grassa nos bairros (cantinas populares, merendas) colapsam ante o aumento
dramático da procura. Se as escolas fecham, acaba a merenda escolar que
garantia a sobrevivência das crianças. É finalmente o caso da emergência da
violência doméstica, particularmente grave nos bairros, e da permanente
emergência da violência policial e da estigmatização que ela traz consigo.
Os idosos. Este grupo, particularmente numeroso
no norte global, é, em geral, um dos grupos mais vulneráveis, mas a
vulnerabilidade não é indiscriminada. Aliás, a pandemia obriga-nos a uma maior
precisão sobre os conceitos que usamos. Afinal, quem é idoso? Ainda segundo a Garganta
Poderosa, a diferença de esperança de vida entre dois bairros de Buenos
Aires (o bairro pobre de Zavaleta e o bairro nobre de Recoleta) é de cerca de
20 anos. Não surpreende que os líderes das comunidades sejam considerados de
“idade madura” pela comunidade e “jovens líderes” pela sociedade em geral.
As condições de vida prevalecentes no
norte global levaram a que boa parte deles fosse viver em lares, casas de
repouso, asilos. Em tempos normais, os idosos passaram a viver nestes
alojamentos como espaços que garantiam a sua segurança. Em princípio, a
quarentena causada pela pandemia não deveria afectar grandemente a sua vida,
dado viverem já em permanente quarentena. O que sucederá quando, devido à
propagação do vírus, esta zona de segurança se transforma em zona de alto
risco, como está a
acontecer em Portugal e Espanha? Estariam mais seguros se pudessem
voltar às casas onde viveram toda a vida, no caso improvável de elas ainda
existirem? Os familiares que, por exclusiva conveniência própria, os alojaram
em lares, não sentirão remorsos por sujeitar os seus idosos a um risco que lhes
pode ser fatal? E os idosos que vivem isolados não correrão agora um risco
maior de morrer sem que ninguém dê conta? Há ainda a acrescentar que, sobretudo
no sul global, epidemias anteriores levaram a que os idosos tivessem que
prolongar a sua vida activa. Por exemplo, a epidemia do HIV/sida matou e
continua a matar pais jovens, ficando os avós com a responsabilidade do
agregado familiar. Se os avós morrerem, as crianças correm um risco muito alto
de fome, desnutrição e morte.
À luz das experiências destes grupos sociais torna-se particularmente
evidente a necessidade de imaginar e adoptar alternativas ao modo de viver, de produzir, de consumir e
de conviver nestes primeiros anos do século XXI.
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