Antes
de mais chamamos a atenção dos visitantes deste blog para o excelente artigo
que Alfredo Barroso assina no Público de hoje (transcrito a seguir), onde o
actual apoiante do Bloco de Esquerda coloca o dedo na ferida relativamente ao
futuro papel do Presidente Marcelo.
É
bom não esquecemos que o Prof. Marcelo Rebelo de Sousa (MRS) é filho de um
homem do regime salazarista, Baltazar Rebelo de Sousa, que chegou a ser governador-geral
de Moçambique no tempo da ditadura. Antes do 25 de Abril é conhecida a
proximidade do jovem Marcelo ao ditador Marcelo Caetano, de quem se diz que é
afilhado. Com a Revolução dor Cravos, MRS apanhou o comboio da democracia mas
suspeita-se que se não tivesse chegado a madrugada libertadora, ele talvez se
tivesse convertido num dos notáveis do regime criado por Salazar.
Apesar
das suas “falinhas mansas”, MRS continua a ser um homem de direita e, portanto,
“intérprete” do projecto da direita, em que um dos seus principais objectivos é
expurgar a Constituição da República os direitos económicos e sociais nela
inscritos. Ninguém tenha dúvidas de que o actual Presidente da República (PR)
vai concorrer a um segundo mandato e já está a trabalhar afincadamente nesse
sentido. Então ou logo que a situação política o permita ele irá preparar uma aproximação
do PS ao PSD e concretizar o seu projecto. Os portugueses terão de estar muito
atentos para não se deixarem embalar nos cantos de sereia dos afectos,
permitindo que o céu lhes caia em cima quando menos esperarem.
Como
dizia o Eça, sob o manto diáfano da fantasia a nudez forte da verdade. Na sua
crónica no PÚBLICO de 25 de Abril, e nos comentários que fez na RTP nesse mesmo
dia, Rui Tavares veio chamar a atenção para uma muito preocupante afirmação
feita pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, a propósito do
40.º aniversário da Constituição, poucos dias antes do discurso feérico que
proferiu perante a Assembleia da República na sessão comemorativa do 42.º
aniversário do 25 de Abril.
Disse
Marcelo – “a partir de um texto escrito, pensado e deliberado”, como sublinha
Rui Tavares – que um dia se irá discutir a inserção na Constituição de “um
estado de excepção económico-financeiro” que permita guiar a jurisprudência sem
recurso aos princípios gerais que, basicamente, permitiram ao Tribunal
Constitucional fazer frente ao pior da austeridade. Para Rui Tavares – e para
mim também – a conclusão é clara: “o projecto de eviscerar os direitos
económicos e sociais da Constituição, ao mesmo tempo que se lhes presta umas
falinhas mansas continua bem presente no espírito da direita portuguesa”. E o
seu principal intérprete é, agora, Marcelo Rebelo de Sousa, eleito PR, se não
com a conivência, pelo menos com a total displicência do PS.
Convirá
lembrar que o país viveu, durante os quatro anos do governo de direita PSD-CDS
subjugado pela “troika”, sob uma ditadura financeira de fachada democrática,
num estado de excepção económica permanente (que justificou várias
arbitrariedades), sujeito a uma usurpação tecnocrática e inebriado por uma
espécie de neoliberalismo de Estado – em que a mão bastante visível do Governo,
“guiada” pela “troika”, criou condições para a privatização de empresas
públicas estratégicas, para o desmantelamento progressivo do Estado social,
para a desregulamentação dos mercados, para a flexibilização cada vez maior das
leis laborais, para o aumento brutal da precariedade e do desemprego, em suma:
para a aplicação do modelo neoliberal almejado pela direita.
A
ideia de um “estado de excepção económico-financeiro” inscrito na Constituição,
com o objectivo paradoxal de suspender a sua aplicação, remete-nos
inevitavelmente para Carl Schmitt – “jurista maldito”, “coveiro do liberalismo”
e “Cassandra do Direito Público”, como alguns colegas o classificaram – que
fundamentou juridicamente a suspensão sucessiva, por parte de Adolf Hitler, da
ordem constitucional legal (a Constituição de Weimar) durante a vigência do
Terceiro Reich. Carl Schmitt, em coerência com o seu antiparlamentarismo e o seu
desprezo pela democracia, definiu a soberania como o poder de decidir a
instauração do “estado de excepção” (“Ausnahmezustand”) – como salientou em 2003 o filósofo italiano
Giorgio Agamben no seu incontornável ensaio sobre o “Stato di Eccezione”, publicado em Portugal pelas
Edições 70, em 2010.
Para
Carl Schmitt, adepto da inclusão de um “elemento ditatorial” nas Constituições,
o “estado de excepção” destina-se a libertar o Executivo de qualquer restrição
legal ao seu poder normalmente exercido, incluindo o recurso a todos os tipos
de violência à margem do Direito (mas sob a sua alçada), inclusive a
transformação do sistema judicial numa “máquina de matar”. Como denuncia
Giorgio Agamben, o “estado de exepção”, isto é, a suspensão do ordenamento jurídico
que estamos habituados a considerar como uma medida provisória e
extraordinária, começou a tornar-se – sobretudo desde o “triunfo” da ideologia
neoliberal – o paradigma normal da governação, que determina cada vez mais a
política dos Estados democráticos, tanto no plano interno como externo.
Numa
célebre polémica jurídico-político com Hans Kelsen, um dos seus principais
rivais, Carl Schmitt – apoiado por figuras proeminentes do nazismo, como
Hermann Göering, Hans Frank e Wilhelm Frick – sustentou que a função de
“Guardião da Constituição” era de natureza política, e não jurídica, em
consequência do que só o Presidente do Reich poderia desempenhar essa função.
Com a ascenção ao poder do Partido Nazi, em 1933, essa função passou a caber ao
“Führer” Adolf Hitler. Quanto a Hans Kelsen, refutou a argumentação de Carl
Schmitt, defendendo que era essencial que a função de “Guardião da
Constituição” fosse desempenhada, numa democracia moderna, por um Tribunal
Constitucional, integrado por magistrados e outros juristas competentes, o que
garantiria maior imparcialidade nas decisões, especialmente quando se tratasse
da protecção das minorias ou de questões relacionadas com as oposições aos
governos. A teoria de Carl Scmitt triunfou, na década de 1930, graças à implantação
do III Reich alemão concebido pelos nazis. Já a teoria de Hans Kelsen, jurista
e judeu, só conseguiu triunfar a seguir à II Guerra Mundial, com o
restabelecimento da democracia na Alemanha.
Em suma, e para terminar:
preocupa-me seriamente que o professor de Direito Marcelo Rebelo de Sousa,
actual Presidente da República, que jurou cumprir e fazer cumprir a
Constituição, esteja mais próximo da teoria sustentada por Carl Schmitt do que
da teoria defendida por Hans Kelsen. Sob o manto diáfano do discurso proferido
na AR, no dia 25 de Abril, a nudez forte da verdade que é a sugestão do “estado
de excepção”.
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