Por
desconhecimento ou má fé, ouvem-se, de vez em quando referências elogiosas e
saudosistas ao regime autoritário que tomou conta do país durante quase meio
século. O branqueamento do que foi a ditadura tem, em geral, origem nos mais
velhos que gozam dos benefícios da democracia mas que só descortinam defeitos neste
regime. Quanto aos mais novos, o confrangedor desconhecimento do que foi o
salazarismo a que o Movimento dos Capitães, em boa hora pôs termo no dia 25 de Abril
de 1974, deve-se apenas à escola. Ninguém percebe e poucos questionam por que razão
não se aborda com alguma profundidade, nos currículos escolares, a nossa
história contemporânea, nomeadamente, o período do chamado Estado Novo.
No
texto que assina na Revista E do Expresso, a jornalista e escritora Clara
Ferreira Alves traça com muita precisão ainda que necessariamente de forma
resumida o que era a vida dos portugueses durante o quase meio século de
ditadura. Não resistimos à tentação de o transcrever para aqui e recomendamos vivamente a sua leitura.
Anda por aí gente com saudades da velha
portugalidade. Saudades do nacionalismo, da fronteira, da ditadura, da guerra,
da PIDE, de Caxias e do Tarrafal, das cheias do Tejo e do Douro, da tuberculose
infantil, das mulheres mortas no parto, dos soldados com madrinhas de guerra,
da guerra com padrinhos políticos, dos caramelos espanhóis, do telefone e da
televisão como privilégio, do serviço militar obrigatório, do queres fiado
toma, dos denunciantes e informadores e, claro, dessa relíquia estimada que é um
aparelho de segurança.
Eu não ponho flores neste cemitério.
Nesse Portugal toda a gente era pobre com exceção
de uma ínfima parte da população, os ricos. No meio havia meia dúzia de
burgueses esclarecidos, exilados ou educados no estrangeiro, alguns com
apelidos que os protegiam, e havia uma classe indistinta constituída por
remediados. Uma pequena burguesia sem poder aquisitivo nem filiação ideológica
a rasar o que hoje chamamos linha de pobreza. Neste filme a preto e branco, pintado
de cinzento para dar cor, podia observar-se o mundo português continental a
partir de uma rua. O resto do mundo não existia, estávamos orgulhosamente sós. Numa
rua de cidade havia uma mercearia e uma taberna. Às vezes, uma carvoaria ou uma
capelista. A mercearia vendia açúcar e farinha fiados. E o bacalhau. Os clientes
pagavam os géneros a prestações e quando recebiam o ordenado. Bifes, peixe fino
e fruta eram um luxo.
A fruta vinha da província, onde os camponeses de
pouca terra praticavam uma agricultura de subsistência e matavam um porco uma
vez por ano. Batatas, peras, maçãs, figos na estação, uvas na vindima, ameixas
e de vez em quando uns preciosos pêssegos. As frutas tropicais só existiam nas
mercearias de luxo da Baixa. O ananás vinha dos Açores no Natal e era partido
em fatias fininhas para render e encharcado em açúcar e vinho do Porto para
render mais. Como não havia educação alimentar e a maioria do povo era
analfabeta ou semianalfabeta, comia-se açúcar por tudo e por nada e, nas
aldeias, para sossegar as crianças que choravam, dava-se uma chucha embebida em
açúcar e vinho. A criança crescia com uma bola de trapos por brinquedo, e com
dentes cariados e meia anã por falta de proteínas e de vitaminas. Tinha grande
probabilidade de morrer na infância, de uma doença sem vacina ou de um acidente
por ignorância e falta de vigilância como beber lixívia. As mães contavam os
filhos vivos e os mortos, era normal. Tive dez e morreram-me cinco. A altura
média do homem lusitano andava pelo metro e sessenta nos dias bons. Havia raquitismo
e poliomielite e o povo morria cedo e sem assistência médica. Na aldeia, um João
Semana fazia o favor de ver os doentes pobres sem cobrar, por bom coração.
Amortalhado
e negro, o povo era bruto e brutal. Os homens embebedavam-se com facilidade e
batiam nas mulheres, as mulheres não tinham direitos e vingavam-se com crimes
que apareciam nos jornais com o título “Mulher Mata Marido com Veneno dos Ratos”.
A violação era comum, dentro e fora do casamento, o patrão tinha direito de
pernada, e no campo, tão idealizado, pais e tios ou irmãos mais velhos violavam
as filhas, sobrinhas e irmãs. Era assim como um direito constitucional. Havia filhos
bastardos com pais anónimos e mães abandonadas que se convertiam em putas. As filhas
excedentárias eram mandadas servir nas cidades. Os filhos estudiosos eram
mandados para o seminário. Este sistema de escravatura implicava o apartheid. Os criados nunca dirigiam a palavra
aos senhores e viviam pelas traseiras. O trabalho infantil era quase
obrigatório porque não havia escolaridade obrigatória. As mulheres não frequentavam
a universidade e eram entregues pelos pais aos novos proprietários, os maridos.
Não podiam ter passaporte nem sair do país sem autorização do homem. A grande
viagem do mancebo para África, nos paquetes da guerra colonial. Aí combatiam
por um império desconhecido. A grande viagem da família remediada ao
estrangeiro era a Badajoz, a comprar caramelos e castanholas. A fronteira de
orava horas a ser cruzada, era preciso desdobrar um milhão de autorizações,
era-se maltratado pelos guardas e o suborno era prática comum. De vez em quando,
um grande carro passava, de um potentado veloz que não parecia sujeitar-se à
burocracia do regime que instituíra uma teoria de exceção para os seus
acólitos. O suborno e a cunha dominavam o mercado laboral, onde não vigorava a concorrência
e onde o corporativismo e o capitalismo rentista imperavam. Salazar dispensava
favores a quem o servia. Não havia liberdade e o lápis da censura aplicava-se a
riscar escritores, jornalistas, artistas e afins. Os devaneios políticos eram
punidos com perseguição e prisão. Havia presos políticos, exilados e
clandestinos. O serviço militar era obrigatório para todos os rapazes e se
saíssem de Portugal depois dos quinze anos aqui teriam de voltar para apanhar o
barco da soldadesca. A fé era a única coisa que o povo tinha e se lhe tirassem
a religião tinha nada. Deus era a esperança numa vida melhor. Depois da morte,
evidentemente.
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