A
recente descoberta da transferência de 10 mil milhões de euros para offshores,
fora de qualquer controlo fiscal, para além do monstruoso prejuízo que terá
causado às finanças públicas portuguesas, veio, mais uma vez, levantar o papel
dos chamados “paraísos fiscais” na fuga ao fisco. A nível global, estamos
perante uma situação em que os detentores de grandes riquezas estão
praticamente protegidos do pagamento de impostos, quando deviam ser os
principais contribuintes. Neste aspecto, os mais prejudicados são os detentores
de pequenos rendimentos, como os trabalhadores e, em geral, a classe média. É
sobre estes que acaba por recair o grosso dos impostos que deveriam ser pagos
pelos mais ricos.
Um
outro aspecto, não menos importante, tem a ver com a utilização das offshores
para a canalização de dinheiro de e para actividades criminosas e terroristas,
tais como o tráfico de droga e venda de armas.
O
texto seguinte (*) traz outra vez à tona, e muito a propósito, a situação da
chamada Zona Franca da Madeira. Embora o artigo não refira nada de novo, é
muito importante recordar os factos.
Em 2011, as estatísticas do FMI
mostravam que a Holanda com 27,5 mil milhões de dólares ocupava a primeira
posição do investimento direto estrangeiro que entrava em Portugal. Para
baralhar as contas, os dados do FMI revelavam que o investimento português em
direção à Holanda correspondia a 26,3 mil milhões de dólares. À exceção de
poucos agricultores holandeses que decidiram passar a reforma esquecidos em
montes alentejanos ou em moradias de luxo no Algarve, não se vislumbra
investimento significativo proveniente da terra das túlipas. A explicação para
este estranho dilema reside no facto de grande parte das empresas portuguesas
cotadas no índice PSI-20 terem deslocalizado a sua sede para a Holanda para
fugir ao fisco e fazer retornar os capitais ao país de origem onde sempre
tiveram atividade efetiva.
Durante três décadas, as estatísticas
convenceram a Comissão Europeia que a Zona Franca da Madeira criava
milhares de postos de trabalho e era um polo de desenvolvimento que justificava
a isenção do pagamento de IRC, de imposto de selo, de taxas liberatórias e de
mais-valias. Mas passado algum tempo percebemos que o PIB per capita da Madeira
não poderia ser superior ao registado no Grande Porto, onde está sediada a
nossa indústria, e descobrimos que havia gato escondido com rabo de fora.
Dois testas-de-ferro geriam 871
empresas-fantasma na Suite 605 do offshore da Madeira e nos dados
enviados para a Autoridade Tributária (AT) estas duas pessoas eram
multiplicadas e contavam como centenas de trabalhadores. Percebemos que a UC
Rusal, a maior produtora de alumínio, a British American Tobacco, a segunda
maior tabaqueira do mundo, a Pepsi Co, a Sonangol e um total de mil empresas
partilhavam uma sala de 100 metros quadrados sem terem contratado um único
madeirense e sem terem atividade produtiva no Funchal. Tudo não passava de um
mega esquema de batota fiscal que impediu Portugal de ter acesso a fundos
comunitários para auxílio às regiões ultraperiféricas e impossibilitou que a
Madeira recebesse anualmente 400 milhões de euros provenientes do Fundo de
Coesão para combater a insularidade, arrastando para a pobreza mais de 30% da
população do arquipélago.
Agora são as estatísticas
relativas a transferências para offshores entre 2010 e 2014 que têm mais
10 mil milhões de euros do que os dados divulgados em 28 de abril de 2016, na
tentativa de abafar o escândalo dos Documentos do Panamá. Dizem-nos que há 20
declarações (o chamado modelo 38) que não foram tratadas, provavelmente para
encobrir alguma ligação ao escândalo do BES.
No final de abril do ano passado, o
jornal PÚBLICO perguntou às Finanças se as estatísticas incluíam as
transferências provenientes do offshore da Madeira e a resposta foi que
“os dados estatísticos relativos ao Centro Internacional de Negócios da
Madeira, bem como a identificação das entidades que ali operam, não são assim
reportados pela respectiva entidade administradora à Autoridade Tributária
nacional”, passando o ónus para o Governo Regional da Madeira.
O que sabemos é que a Lei Geral
Tributária obriga as instituições de crédito e as sociedades financeiras a
comunicar à AT “as transferências e envio de fundos que tenham como
destinatário entidade localizada em país, território ou região com regime de
tributação privilegiada mais favorável.”
Sabemos que a Instrução n.º 17/2010 do
Banco de Portugal obrigava as mesmas entidades a reportarem ao banco central as
operações de transferência para jurisdições offshore. Sabemos que os
bancos estão obrigados pela Diretiva Comunitária anti-branqueamento de capitais
a identificarem os beneficiários efetivos das operações financeiras
transfronteiriças. Sabemos ainda que o Boletim Estatístico do Banco de Portugal
nos dados relativos ao Balanço e à Demonstração de Resultados agregados do sistema
bancário, excluí as instituições com sede no offshore da Madeira.
Sabemos que o Despacho n.º 17024-A/2010,
de 8 de novembro, assinado por Sérgio Vasques, então secretário de Estado dos
Assuntos Fiscais, determina que a AT divulgue na sua página, até ao final do
mês de outubro de cada ano, “informação estatística relativa às transferências
financeiras que tenham como destinatário entidades localizadas em país,
território ou região com regime de tributação privilegiada.” Não havendo
despacho posterior que revogue o despacho de Sérgio Vasques ou lei habilitante
que se sobreponha ao mesmo, o despacho de 2010 mantêm-se em vigor. Aliás, no
mesmo documento, o secretário de Estado incumbe a AT de divulgar a lista
nominal das entidades que usufruíram de benefícios fiscais na Zona Franca da
Madeira. Essa lista tem sido divulgada, sempre fora de prazo e a pedido, após
cartas enviadas aos sucessivos ministros das Finanças e algum ruído da
imprensa.
Finalmente o que todos sabemos é que as
entidades supervisoras e inspetivas não fazem o seu trabalho de casa e as
estatísticas estão erradas. A empresa do multimilionário russo Oleg Derispaska
chegou a faturar 3 mil milhões de euros no offshore da Madeira e
passados três anos de sobrefaturação desapareceu sem deixar rasto, transferindo
todo o dinheiro para outra empresa-fantasma sediada em Chipre.
Se fizermos contas percebemos que os
números das estatísticas não batem certo e há pelo menos 12 mil milhões de
euros fora da caixa. Se considerarmos os valores da receita reportada pela
AT-RAM [Região Autónoma da Madeira], percebemos que as empresas do offshore
da Madeira em 2015 pagaram 151 milhões de euros de IRC a uma taxa de 5%, sendo
o seu lucro extrapolado superior a 3 mil milhões de euros. Considerando que nos
anos de 2010 e 2011 as empresas do offshore da Madeira estavam isentas
do pagamento de IRC e se olharmos para a lista das principais exportadoras,
encontramos dados que nos mostram que o dinheiro que saiu para offshores
provenientes da Zona Franca da Madeira é muito superior ao que está nas
estatísticas oficiais da AT.
Não se pode acreditar em todas as
estatísticas, da mesma forma que não se deve confiar em todas as pessoas.
Afinal, é tudo uma questão de números.
(*) João Pedro Martins, Público
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