Nos tempos que correm assistimos a uma
crescente manipulação da informação e, nem sequer nos estamos a referir às
notícias falsas que encontramos a cada passo nas redes sociais. Basta estarmos
com alguma atenção para detectarmos grosseiros desvirtuamentos da realidade dos
factos até porque começamos a associá-los à mesma origem. É bem provável que
muitas pessoas, fartas de tantas tentativas de manipulação da verdade a que são
sistematicamente sujeitas já tenham deixado de frequentar algumas redes
sociais. Ninguém gosta de ser enganado.
Infelizmente, não é só nas redes sociais
que se deturpa a verdade e, em muitos casos, de forma subtil, quase imperceptível.
Estamos a referir a alguma imprensa escrita e a noticiários televisivos. Há muito
quem não olhe a meios para atingir os fins. Esta situação é, neste momento,
particularmente notória em relação à crise que se vive na Venezuela com
notícias contraditórias e em que se percebe que a exactidão dos factos não é,
de todo, uma preocupação que se note. Trabalha-se a informação sem qualquer
espírito crítico e sem ser confrontada com várias fontes, mas em que o tom
geral é claramente favorável ao autoproclamado presidente Juan Guaidó.
Em contrapartida, assistimos a uma quase ausência
de notícias sobre o genocídio que está a ser perpetrado pela Arábia Saudita no
Yémen, com muitos milhares de mortos particularmente devido à fome e onde são
em especial atingidas as crianças.
Por que razão assistimos a critérios tão
díspares na divulgação da informação? De certeza, não nos enganaremos se a
resposta a esta pergunta se traduza apenas numa palavra: petróleo.
De qualquer maneira, há fontes de informação
que nos merecem toda a credibilidade e, entre elas, está a do Subsecretário-geral
das Nações Unidas para os Assuntos Humanitários, Mark Lowcock que assina no “Público”
deste sábado o artigo de opinião que reproduzimos a seguir, onde é referida a
urgência humanitária que se vive neste momento no Yémen e a que a “comunidade
internacional” tem dado pouca importância.
Em novembro passado, conheci um menino extraordinário
chamado Fawaz num hospital em Aden, no Iémen. Aos 18 meses de idade, esta
criança pesava pouco mais de 4 kg. Severamente desnutrido, Fawaz estava no
hospital há mais de um mês, reagindo mal ao leite terapêutico que lhe era
administrado. No entanto, ele perseverou, determinado a viver. A mãe de Fawaz,
Rokaya, esteve na sua cabeceira dia e noite como se estivesse num pacto
silencioso com o filho para garantir que ele sobreviveria.
Ao contrário da maioria das crianças gravemente
desnutridas, Fawaz não respondeu bem aos dois tipos de leite terapêutico
normalmente utilizados para tratar estas crianças. Após semanas de
tratamentos sem resultados e várias transfusões de sangue, os médicos optaram
por receitar leite hipoalergénico, que é mais caro e que teve de ser pago pela
família de Fawaz.
Sem este leite, a criança não teria recuperado. No
entanto, a sua convalescença teve um preço tremendo para esta família. Cada
lata de leite custa cerca de 30 dólares e, para as famílias que sobrevivem com
poucos dólares por dia, isto tem consequências devastadoras. Cuidados médicos
prestados a uma criança significam menos comida e uma refeição a menos por dia
significa um maior risco de desnutrição para as outras crianças do agregado
familiar.
Esta história tem um final feliz. Fawaz venceu, tendo
deixado o hospital a 20 de dezembro e continua a recuperar.
Contudo, milhões de iemenitas continuam a enfrentar
condições igualmente terríveis, estimando-se
que 85 mil crianças no Iémen terão perdido a luta contra a fome desde
2015.
De um total de 20 milhões de pessoas que precisam de
ajuda para garantir alimentos, quase dez milhões estão a um passo da fome,
perto de 240 mil enfrentam níveis catastróficos de fome e mal conseguem
sobreviver.
Neste momento, apenas metade das unidades de saúde do
país estão em funcionamento pleno. Centenas de milhares de pessoas adoeceram no
ano passado devido às más condições de saneamento e a doenças transmitidas
através da água. As necessidades são cada vez maiores. Hoje, milhões de iemenitas
estão mais famintos, mais doentes e mais vulneráveis do que há um ano.
As Nações Unidas e os parceiros humanitários estão a
fazer o seu melhor para proporcionar a crianças como Fawaz uma oportunidade
para lutar.
Ao longo de 2018, apesar de ser um dos ambientes
operacionais mais perigosos e complexos em todo o mundo, cerca de 254 parceiros
internacionais e nacionais foram ativamente coordenados para chegar a ainda
mais pessoas no Iémen. Juntos, ajudámos cerca de oito milhões de pessoas, todos
os meses, em todo o país, naquela que é
já a maior operação humanitária do globo. Somente em dezembro,
prestámos assistência alimentar a um número recorde superior a dez milhões de
pessoas.
Contudo, não é suficiente. Sabemos que podemos salvar
milhões de vidas este ano mas estamos a ficar sem tempo. E estamos a ficar sem
dinheiro.
É por isso que, a 26 de fevereiro, as Nações Unidas
promovem uma conferência de alto nível em Genebra, coorganizada pelos governos
da Suécia e da Suíça. São necessários mais quatro mil milhões de dólares para a
resposta humanitária no Iémen este ano, um aumento de 33% em relação ao ano
passado, para fornecer alimentos mas também tratamento a crianças desnutridas
como o Fawaz, cuidados de saúde, água potável e muito mais.
A quantia de dinheiro necessária pode parecer avultada
mas ajudará 15 milhões de iemenitas, cerca de metade da população, revertendo a
cólera, protegendo crianças contra doenças mortais, combatendo a desnutrição e
melhorando as condições de vida das pessoas mais vulneráveis. Sem financiamento
adicional, isso simplesmente não pode acontecer.
Os países doadores têm continuado a financiar o Plano
de Resposta Humanitária para o Iémen e nós esperamos que o façam, uma vez mais,
este ano. Todos devemos evitar que a tragédia humanitária que está a ter lugar
no Iémen se deteriore ainda mais. Tenho toda a esperança de que nossa ação
coletiva, em Genebra, possa salvar mais vidas e reforçar o processo político em
direção a uma solução pacífica.
Devemos isso
às crianças do Iémen e às suas famílias.
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