O que actualmente se passa com a intervenção
– por enquanto política – descarada dos Estados Unidos (EUA) na Venezuela é um
remake mal amanhado do filme que precedeu a invasão militar do Iraque. Tal como
aconteceu então, a Europa está agora a fazer o papel de idiota útil em defesa
dos interesses norte-americanos numa região em que os EUA se portam como uma
potência colonial. Os lideres europeus, que cinicamente se manifestam
preocupados com a defesa da democracia na Venezuela, não mexem uma palha para
colocar na ordem vários governos protofascistas que no interior da UE dão
tratos de polé ao regime democrático. A posição da Europa na crise venezuelana é,
pois, vergonhosa, por duas razões de fundo: 1) O que está em causa na Venezuela
são as colossais reservas de petróleo que este país guarda no seu subsolo; 2)
Donald Trump não tem as credenciais mínimas para se arvorar em defensor da
democracia uma vez que é “admirador dos mais abjectos ditadores do mundo”.
Estamos, pois, perante uma situação tão
óbvia que o mais mal informado cidadão percebe com clareza o que realmente se
está a passar. De facto, só é enganado quem quer, como refere Daniel Oliveira
no seguinte texto que constitui a sua crónica de ontem no “Expresso” Diário.
A catástrofe social
e humanitária na Venezuela tem dois responsáveis políticos. O primeiro é
Nicolás Maduro, que se agarra ao poder como uma lapa apesar da sua
incomensurável incompetência e evidente impopularidade. O segundo é Donald
Trump, que organiza o cerco à Venezuela, fazendo os cidadãos pagar o preço
deste braço de ferro. Os dois, Maduro e Trump, devem ser condenados por este
jogo macabro.
A resposta à crise política na Venezuela são eleições
presidenciais antecipadas, que nem Maduro nem o autoproclamado Presidente
querem marcar, apesar de ser o dever político do primeiro e do segundo se ter
comprometido a isso perante a comunidade internacional. Só não reconheço
qualquer legitimidade à administração Trump para qualquer intervenção em
qualquer país da América Latina, usando o esfarrapado argumento da defesa da
democracia. Falta aos Estados Unidos, que sempre se com comportaram como uma
potência colonial na região, o currículo mínimo para se autoproclamarem
polícias do continente. E muito menos Donald Trump, admirador dos mais abjetos
ditadores do mundo. Quanto à Europa, não lhe reservo mais do que umas linhas
para o seu miserável seguidismo, apenas para anotar que a UE já se esforçou
mais pela democracia na Venezuela do que pela democracia na Hungria, que é seu
Estado-membro.
Não há nada de novo na utilização da “ajuda
humanitária” como arma política. Não sei se alguma vez tinha atingido o
espalhafato hollywoodesco de vir acompanhada com espetáculos musicais na
fronteira, abrilhantados pela presença do intrépido combatente pelos direitos
humanos, Mike Pence. Mas esta forma de “ajuda humanitária” só engana quem quer
ser enganado. Nicolás Maduro não tem razão em coisa alguma, a começar pelo
facto de não ter reconhecido um Parlamento eleito e a acabar pela recusa em
marcar eleições presidenciais que façam o país sair do impasse. Mas tem toda a
razão numa coisa: o envio de ajuda humanitária para a Venezuela é de um cinismo
pornográfico.
A Venezuela tem a maior reserva petrolífera do mundo e
é um dos maiores produtores de crude. O levantamento do bloqueio à compra das
suas matérias-primas e à venda de material de refinaria, assim como o
descongelamento de contas do país, chegaria para resolver o problema
humanitário da Venezuela num ápice, permitindo que o país se sustentasse a si
mesmo. Cercar economicamente um país para o obrigar a receber em esmola
política o que pode pagar com o que é seu é o oposto de uma ajuda humanitária.
A ajuda oferecida pelos EUA e pela Europa é tão humanitária como a da Rússia. É
um jogo político que usa a fome dos venezuelanos.
A retórica cínica da ajuda humanitária pode, no
entanto, ter outro propósito: tornar aceitável mais uma intervenção militar que
ofereça aos EUA o controlo de reservas petrolíferas e restabeleça o seu total
poder no quintal da América Latina. A conversa humanitária já foi usada para
invadir outro importante produtor petrolífero, o Iraque. Também então os
promotores daquela aventura (alguns são repetentes, como o sinistro John
Bolton) prometiam a democracia em troca da rendição. Estamos ainda hoje a
pagar, com uma tragédia no Iraque e na Síria, a crise dos refugiados e o
terrorismo no mundo, o preço da irresponsabilidade. Também então os que não
estiveram do lado de Bush foram acusados de cumplicidade com um ditador.
Estavam apenas do lado da razão, da cautela e da decência. É desse lado que
devem continuar.
Os que agora usam o povo da Venezuela para o seu
cinismo “humanitário” são mais ou menos os mesmos que prometiam espalhar a
democracia pelo Iraque e seus vizinhos. Sem ser preciso qualquer tipo de
solidariedade, apoio ou compreensão para com Maduro, devem merecer a mesma
oposição que tiveram em 2003. Se o Iraque serviu para alguma coisa foi para não
voltarmos a ser enganados pela máquina de propaganda de Washington. O que os
movia então é o que os move agora.
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