Aos poucos, vai-se sabendo que a situação
na Venezuela não é exactamente aquilo que nos tem sido dado a conhecer através
da nossa comunicação social. Há vozes de inquestionável credibilidade que nos
fazem chegar informações que, muito provavelmente, nos têm sido conscientemente
sonegadas por interesse no encobrimento de verdades inconvenientes. Estamos a
referir o caso do Prof. Boaventura Sousa Santos (BSS), fundador e director do
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES), personalidade de
grande relevo internacional e profundo conhecedor da realidade da América
latina. Sem querer olvidar os erros cometidos pelo regime de Maduro, BSS
confirma (no “Público de hoje) que o que se está a passar na Venezuela tem tudo
a ver com as reservas de petróleo que este país alberga no seu solo e quase
nada com a defesa da democracia e dos direitos humanos. Significativo é
sabermos que Guaidó, membro de um pequeno partido de extrema-direita, não
constitui mais que uma marionete manipulada a partir de Washington, num processo
não inédito da acção de governos norte-americanos.
O que se está a passar na Venezuela é
uma tragédia anunciada, e vai provavelmente causar a morte de muita gente
inocente. A Venezuela está à beira de uma intervenção militar estrangeira e o
banho de sangue que dela resultará pode assumir proporções dramáticas. Quem o
diz é o mais conhecido líder da oposição a Nicolas Maduro, Henrique Capriles,
ao afirmar que o Presidente-fantoche Juan Guaidó está a fazer
dos venezuelanos "carne para canhão".
Ele sabe do que está a falar. Sabe, por exemplo, que Hugo Chávez levou
muito a sério o destino da experiência socialista democrática de Salvador
Allende no Chile. E que, entre outras medidas, armou a população civil, criando
as milícias, que obviamente podem ser desarmadas, mas que muito provavelmente
tal não ocorrerá sem alguma resistência. Sabe também que, apesar do imenso
sofrimento a que o país está a ser submetido pela mistura tóxica de erros
políticos internos e pressão externa, nomeadamente por via de um embargo que a
ONU considera humanitariamente condenável, continua entranhado no povo
venezuelano um sentimento de orgulho nacionalista que rejeita com veemência
qualquer intervenção estrangeira.
Perante a dimensão do risco de
destruição de vidas inocentes, todos os democratas venezuelanos opositores do
governo bolivariano fazem algumas perguntas para as quais só muito penosamente
vão tendo alguma resposta.
Porque é que os EUA, acolitados por
alguns países europeus, embarcam numa posição
agressiva e maximalista que inutiliza à partida qualquer solução
negociada? Porque é que se fazem ultimatos típicos dos tempos imperiais dos
quais, aliás, Portugal tem uma experiência amarga? Porque foi recusada a
proposta de intermediação feita pelo México e o Uruguai, que tem como ponto de
partida a recusa da guerra civil? Porque um jovem desconhecido do povo
venezuelano até há algumas semanas, membro de um pequeno partido de
extrema-direita, Voluntad Popular, directamente envolvido na violência de rua
ocorrida em anos anteriores, se autoproclama Presidente da República depois de
receber um telefonema do vice-presidente dos EUA, e vários países se dispõem a
reconhecê-lo como Presidente legítimo do país?
As respostas virão com o tempo, mas o
que vai sendo conhecido é suficiente para indicar por onde surgirão as
respostas. Começa a saber-se que, apesar de pouco conhecido no país, Juan
Guaidó e o seu partido de extrema-direita, que tem defendido abertamente uma
intervenção militar contra o governo, são há muito os favoritos de Washington
para implementar na Venezuela a infame política de regime change. A isto
se liga a história das intervenções dos EUA no continente, uma arma de
destruição maciça da democracia sempre que esta significou a defesa da
soberania nacional e questionou o acesso livre das empresas norte-americanas
aos recursos naturais do país. Não é difícil concluir que não está em causa a
defesa da democracia venezuelana. O que está em causa é o petróleo da
Venezuela.
A Venezuela é o país com as maiores
reservas de petróleo do mundo (20% das reservas mundiais; os EUA têm 2%). O
acesso ao petróleo do Médio Oriente determinou o pacto de sangue com o país
mais ditatorial da região, a Arábia Saudita, e a destruição do Iraque, da
Síria, da Líbia, no Norte de África; a próxima vítima pode bem ser o Irão. Acresce
que o petróleo do Médio Oriente está mais próximo da China do que dos EUA.
Enquanto o petróleo da Venezuela está à porta de casa.
O modo de aceder aos recursos varia de
país para país, mas o objectivo estratégico tem sido sempre o mesmo. No Chile,
envolveu uma ditadura sangrenta. Mais recentemente, no Brasil, o acesso aos
imensos recursos minerais, à Amazónia e ao pré-sal envolveu a transformação de
um outro favorito de Washington, Sergio Moro,
de ignorado juiz de primeira instância em notoriedade nacional e internacional,
mediante o acesso privilegiado a dados que lhe permitissem ser o justiceiro da
esquerda brasileira e abrir caminho para eleição de um confesso apologista da
ditadura e da tortura que se dispusesse a vender as riquezas do país
ao desbarato e formasse um governo de que o favorito pró-norte-americano do
futuro do Brasil fizesse parte.
Mas a perplexidade de muitos democratas
venezuelanos diz especialmente respeito à Europa, até porque no passado a
Europa esteve activa em negociações entre o governo e as oposições. Sabiam que
muitas dessas negociações fracassaram por pressão dos EUA. Daí a pergunta:
também tu, Europa? Estão conscientes de que, se a Europa estivesse genuinamente
preocupada com a democracia, há muito teria cortado relações diplomáticas com a
Arábia Saudita. E que, se a Europa estivesse preocupada com a morte em massa de
civis inocentes, há muito que teria deixado de vender à Arábia Saudita as armas
com que este país está a levar a cabo o genocídio do
Iémen. Mas talvez esperassem que as responsabilidades históricas da
Europa perante as suas antigas colónias justificassem alguma contenção. Porquê
este alinhamento total com uma política que mede o seu êxito pelo nível de
destruição de países e vidas?
A pouco e pouco se tornará claro que a
razão deste alinhamento reside na nova guerra fria que entretanto estalou entre
os EUA e a China, uma guerra fria que tem no continente latino-americano um dos
seus centros e que, tal como a anterior, não pode ser travada directamente
entre as potências rivais, neste caso, um império declinante e um império
ascendente. Tem que ser travada por via de aliados, sejam eles num caso os
governos de direita da América Latina e os governos europeus, e, noutro caso, a
Rússia. Nenhum império é bom para os países que não têm poder para beneficiar
por inteiro da rivalidade. Quando muito, procuram obter vantagens do
alinhamento que lhes está mais próximo. E o alinhamento tem de ser total para
ser eficaz. Isto é, é preciso sacrificar os anéis para não se irem os dedos.
Isto é tão verdade do Canadá como dos países europeus.
Tenho-me reconhecido bem representado pelo Governo do meu país no poder
desde 2016. No entanto, a legitimidade
concedida a um Presidente-fantoche e a uma estratégia que muito
provavelmente terminará em banho de sangue faz-me sentir vergonha do meu
Governo. Só espero que a vasta comunidade de portugueses na Venezuela não venha
a sofrer com tamanha imprudência diplomática, para não usar um outro termo mais
veemente e verdadeiro da política internacional deste Governo neste caso.
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