São mais que muitos os exemplos de países,
com fracas estruturas de poder e muitas vezes governados por cliques de
corruptos, onde a descoberta de riquezas naturais só trouxe desgraças, destruição
e morte para as populações indefesas e enganadas. A certa altura aparecem uns
abutres, cinicamente preocupados com o respeito pelos direitos humanos e a
democracia que se armam em defensores da liberdade dos povos quando, antes,
quase nem conheciam a sua existência.
Só ingénuos acreditam que o que se passa
atuamente na Venezuela não tem nada a ver com o facto de este país ser o
detentor das maiores reservas de petróleo conhecidas no planeta. Não fosse este
o caso, e bem poderia um qualquer déspota ser presidente por toda a vida caso
abrisse as portas à exploração do ouro negro por parte das grandes multinacionais
petrolíferas do grande vizinho do norte.
Está já montado um típico cenário que
prepare a intervenção do país de Trump na Venezuela, de modo a colocar no poder,
a qualquer preço, mais um serventuário dos interesses norte-americanos na
América latina.
É à volta desta situação que gira o excelente
artigo de opinião que Francisco Louçã assina hoje no Expresso Diário.
Há várias formas de capturar um
território com reservas de petróleo e nenhuma é fácil. A mais confortável é ter
lá um governo que proteja os interesses da potência hegemónica, até deve ter
capacidade militar e, de preferência, ser uma ditadura. É mais seguro. Se for
uma ditadura teocrática, excelente, tudo se justifica. Assim género Arábia
Saudita.
A segunda forma é uma guerra de
ocupação. É um quebra-cabeças. Chega-se lá com um truque do tipo do incidente
do Golfo de Tonkin, eles é que nos atacaram (1964, e foi a invasão
norte-americana do Vietname), ou com o anúncio da descoberta das armas de
destruição maciça de Saddam, ele é perigoso (2003, e foi a invasão
norte-americana do Iraque). Mas tem sempre custos, botas militares no terreno
podem voltar para casa em caixões. E depois os argumentos para a invasão são
sempre um risco, como as tais armas no Iraque, uma certeza reafirmada na ONU
por um general prestigiado, Colin Powell. Finalmente, mesmo que a opinião
pública fique perplexa, há protesto e pode ser gigantesco, não por causa de
Saddam Hussein, que ninguém tolerava, mas porque Washington já usou o truque
vezes demais e não carecia de muito para perceber que mais uma guerra no Médio
Oriente ameaçaria toda a região e a Europa. O resultado é, tudo somado, incerto.
No Iraque, o saldo foi a extensão do poder de influência do Irão e mais
terrorismo. Pagamos o preço ainda hoje.
Como a primeira estratégia não está
disponível na Venezuela e a segunda é por ora demasiado arriscada, uma terceira
está a ser ensaiada. Leva mais tempo, não é força concentrada, depende da
evolução dos movimentos populares, é a estratégia do cerco e da convulsão
interna. Ela depende de conseguir criar uma massa de revolta social. Mas há
qualquer coisa de estranho que se está a passar: mal governada por um regime
assente no petróleo, e o petróleo é sempre corrupção, que foi incapaz de
diversificar a produção e de criar alguma soberania alimentar, cercada por
sanções que impedem ou limitam as suas exportações, explorada pelos seus
aliados chineses e russos, com os supermercados vazios, na Venezuela a opinião
pública está dividida mas não se alinha facilmente com Trump. Onde se esperava
uma cavalgada triunfante até à porta do palácio, vemos manifestações gigantes
dos dois lados. E é por isso que este foi o momento escolhido para o
reconhecimento internacional de Guaidó, ele precisa desse impulso externo para
tentar dividir as forças armadas, depois de só ter conseguido a apresentação
pífia de um coronel em Washington e de um general revoltado algures no país.
Há uma consequência
desta terceira estratégia. É que ela exige política suja em bombardeamento
maciço. Como se trata de jogar na divisão interna e de neutralizar a opinião
pública internacional, é necessária uma devastadora campanha ideológica. Choque
e pavor, mas não com bombas, será com notícias e opiniões. Tem de haver
gritaria, choro, insultos, redes sociais em polvorosa. Ora, a estratégia
vacilou no fim de semana, pois as televisões fizeram o seu trabalho e mostraram
as duas manifestações. É inconveniente, esperava-se que só mostrassem a de
Guaidó. Já tinha havido o caso da notícia da invasão da casa do pretendente. E
depois o pateta veio contar como foi, uma carrinha branca com gente que se
identificou como serviços secretos e que fizeram perguntas ao segurança que
estava na guarita. Não pode ser assim, isto precisa de gente morta, imagens de
desastre e violência.
Entretanto, como o caso se prolonga no
tempo, vão surgindo alguns deslizes de nervosismo, como Bolton a sugerir que
pode prender Maduro em Guantánamo (portanto, digam-me se estou a raciocinar
bem: isso alegaria que o Presidente venezuelano é uma ameaça de segurança para
os Estados Unidos e seria preso sob uma legislação de exceção que lhe retira o
direito de defesa em tribunal). Outro erro, Trump vai lembrando uma invasão
militar, tem de satisfazer os seus apoiantes, mas isso incomoda os governos
europeus que, em estado de negação, rezam para que os militares internos lhes
resolvam o problema que pode exigir militares invasores.
No fim, tudo se resume a
isto: ainda se vai descobrir que deve haver armas de destruição maciça na
Venezuela. Ou um incidente sangrento que justifique tudo. De uma forma ou
outra, tem mesmo de haver o início de uma guerra civil para que a estratégia
funcione. E já vimos de tudo, não é certo? Os alinhamentos mais surpreendentes
são sempre possíveis e, para os que acham que os blocos geoestratégicos são uma
garantia de proteção, venho lembrar-lhes que, após o golpe contra Allende, a
China e o Vaticano foram os primeiros Estados a reconhecer o general Pinochet,
enquanto os presos chegavam ao estádio de Santiago para serem fuzilados.
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