João Camargo, conhecido investigador em alterações
climáticas assina no “Público” de hoje um interessantíssimo artigo de opinião
em que explana a ideia de ecossocialismo como “um movimento político pelo
futuro, baseado na salvaguarda dos equilíbrios ecológicos, na preservação de
ambientes saudáveis, na defesa de quem trabalha e na recusa do modo de produção
capitalista”, partindo da
noção óbvia de que constituindo o nosso planeta um sistema finito, não pode
crescer de forma infinita.
O texto só aparentemente é longo na medida
em que explica em poucas palavras uma relevante ideia que desde já deve ser
tida em conta relativamente ao futuro da Humanidade.
A Humanidade é hoje atormentada por
várias crises: uma crise de
saúde pública, uma crise económica, uma crise financeira, uma crise
da natureza, uma crise climática. Os vários fios condutores destas crises podem
ser encontrados na força motriz da destruição social e ambiental: o
capitalismo.
A crise do capitalismo que vivemos hoje
é conjuntural, uma espécie de ensaio geral para o colapso civilizacional
associado à degradação das condições ambientais e materiais criada por este
sistema de produção e distribuição baseado na acumulação de capital pelo roubo
de mais-valia do Trabalho, extracção, destruição e degradação dos recursos da
Natureza. Sendo a actual crise do capitalismo conjuntural, é a sua versão
neoliberal que atravessa neste momento a crise orgânica e final: as
instituições do capitalismo global, sejam a finança, as multinacionais, os
governos que gerem as suas secções nacionais e os seus partidos políticos,
estão tão desprestigiados quanto os resultados da sua governação e planificação
económica. Aquilo que têm para mostrar é austeridade, degradação social e moral
sem precedentes e destruição
ambiental sem paralelo na história da nossa espécie. Defendem isto
apregoando crescimento económico, apregoando PIB e consumo supérfluo,
aplaudindo mesmo quando a destruição do que não tem valor “gera” “capital”.
Constroem o seu sucesso sobre montanhas de ossos e cinzas.
A desglobalização não é uma coisa que
acontecerá no futuro, é algo que já está aqui. A desglobalização social é feita
de cima para baixo e já tem os seus comandantes políticos: Trump, Bolsonaro,
Duterte. A ascensão do nacionalismo (que é defendida por uma boa parte dos
capitalismos nacionais) é a primeira parte desta desglobalização, embora seja
mais óbvia nos assuntos que impactam a Humanidade e o seu futuro – como
alterações climáticas, direitos humanos ou pandemias – e só depois nos assuntos
que impactam a burguesia capitalista internacional, como o comércio e a
financeirização. A desglobalização económica, antítese do capitalismo,
será construída pela destruição ambiental, sob a forma de catástrofes naturais
e sob a forma de pandemias.
Com a crise do coronavírus, precipita-se
outra fase da desglobalização e da crise orgânica do capitalismo neoliberal: a
ascensão da imprescindibilidade dos serviços públicos, o resgate das economias
inteiras, o colapso de boa parte da economia inútil, das rendas e dos juros,
das transacções financeiras, do turismo de massas, da importação e exportação
sem outra orientação que a obtenção de lucros. Sectores inteiros da economia
capitalista não se levantarão na próxima década. Muita economia essencial será
também afectada pelos fios que se foram cosendo para colar o imprescindível à
pesada âncora do capital. A janela de possibilidades para a hipótese de repetir
a receita da austeridade das últimas crises fecha-se: não há credor quando toda
a economia colapsa e não haverá economia sem rendimento. O desemprego em massa
tenderá a ressuscitar mais uma bolsa de oxigénio para o capitalismo, agora de
cara lavada. A estimulação do consumo e as medidas monetárias serão
glorificadas, com um rendimento básico incondicional – pago directamente
através de papel impresso num banco – ou através do subsídio directo às contas
básicas – casa, água, luz, comida – dado através de papel impresso num banco.
Haverá helicópteros de dinheiro, bazucas de dinheiro, e todo ele será queimado
na fogueira da especulação, do açambarcamento, do oportunismo, pois é essa
mesmo a característica principal do capitalismo. Os abutres especuladores
rondam por todo o lado, avançando sobre os sectores em apuros para sugar as
últimas pulsações e seguirão para o investimento nos fundos públicos,
desfalcarão o que puderem, roubarão tudo o que estiver à mão. Ecrã inteiro
Ouvem-se já capitalistas a pedir
dinheiro. Aqueles que há pouco cuspiam até em noções modestas como Estado
Social estendem a mão e pedem que a mão visível do Estado lhes continue a
entregar os produtos do trabalho criado por outrem. Já se pede o fim das quarentenas,
que se deixe morrer algumas pessoas porque a “economia” tem de voltar a correr.
Os mais inequívocos correm a tentar patentear eventuais curas desta pandemia e
quadruplicam o custo dos produtos médicos essenciais. Os fogachos de
beneficência passam com o arrastar das semanas, mas são pouco mais do que o
dinheiro que antes gastavam em propaganda. A sua beneficência é, como sempre
foi, propaganda.
Os governos de hoje não sabem o que
fazer. Colocam-se portanto numa posição entre capital e social, uns oscilando
para um lado, outros para outros. Na capital do capitalismo, Donald Trump
promete salvar todos os empresários enquanto deixa as empresas de saúde
privadas decidir quem vive e quem morre, enquanto as filas dos supermercados
são mais pequenas do que as filas para comprar armas e balas. No coração do
capitalismo industrial da Europa, Angela Merkel promete adquirir e exercer
controlo sobre sectores-chave da economia, enquanto o seu delfim Macron fala de
nacionalizações. Quando terminar a fase aguda da pandemia tudo farão para
regressar à “normalidade”, devolvendo às mãos da burguesia capitalista os
comandos da economia para a planificarem ao bel-prazer dos seus lucros. A
normalidade a que aspiram é o colapso climático e será esse o rumo de qualquer recuperação
pós-coronavírus comandada por estes governos.
Se não existisse crise climática, a
epidemia do coronavírus seria o principal evento global das nossas vidas. Mas
como existe crise climática, não é. Vivemos já numa nova realidade da
Humanidade, a tendência global avassaladora de um novo ambiente que cuspirá
para fora do prato a globalização, o positivismo e o capitalismo. A questão é
uma e uma só: será a Humanidade cuspida com elas ou procurará uma inteligência
colectiva que substitua uma realidade ambiental e social criada pelo sistema
capitalista para criar estratificação, para promover estratificação, para
ossificar estratificação e justificá-la teoricamente, através de falácias
lógicas e mentiras históricas, através do apagamento de povos, culturas,
géneros e alternativas?
A necessidade de um mercado em constante
expansão para os seus produtos levou o capitalismo a todas latitudes, a todos
os ecossistemas, a toda a superfície do globo. O capitalismo tem de repousar em
todo o lado, instalar-se em todo o lado, estabelecer conexões em todo o lado.
Destruir em todo o lado. É uma teoria que colide com a realidade. Não, não há
crescimento infinito num sistema finito como o planeta Terra. Atingimos vários
limites biogeofísicos nas últimas décadas e com isso já destruímos algo de que
usufruímos sem qualquer esforço durante os últimos 12 mil anos: um clima
estável que nos permitiu, depois de quase 300 mil anos de caça-recoleção e
pequenos números, instalar-nos em muito mais territórios do que antes, planear
alimento para vários anos, sermos muito mais, vivermos juntos, discutir juntos,
aprender colectivamente, desenvolver escrita, música, literatura, pintura,
teatro, civilização. Esta destruição é o legado que o capitalismo deixa à
Humanidade. Podemos impedir que o seu legado à Humanidade seja também a
extinção da civilização. Como?
O ecossocialismo é um movimento político
pelo futuro, baseado na salvaguarda dos equilíbrios ecológicos, na preservação
de ambientes saudáveis, na defesa de quem trabalha e na recusa do modo de
produção capitalista. É uma corrente de acção ambiental e climática baseada em
análise marxista crítica da fixação com a mercadoria e com a ascensão do valor
de troca, da lógica do mercado e do lucro e da recusa do autoritarismo
burocrático das experiências do “socialismo real”. É um movimento político que
propõe a primazia dos valores de uso, da satisfação das necessidades reais, da
igualdade social, da salvaguarda e recuperação da natureza e dos meios
naturais, que afirma inequivocamente a economia como um subsistema do meio
ambiente.
Voltamos a Marx: “O Trabalho não é a
fonte de toda a riqueza. A Natureza é tanto uma fonte de valores de uso (e é
seguramente nestes que consiste a riqueza material!) quanto o trabalho, que é
ele mesmo a manifestação de uma força da natureza, o trabalho humano.” Os
ecossocialistas recusam a ecologia de mercado e o socialismo baseado nas
mercadorias e no valor de troca como orientações.
Uma sociedade ecossocialista basear-se-á
na racionalidade ecológica, na propriedade colectiva dos meios de produção, no
planeamento democrático da produção para a definição dos investimentos e dos
objectivos produtivos com vista à satisfação das verdadeiras necessidades da
Humanidade. A solução não é uma limitação “geral do consumo”, mas sim uma
mudança do consumo, da ostentação, do desperdício, da alienação e da acumulação
que prevalecem na ordem capitalista. Neste sentido, as reformas são
insuficientes, porque não conseguem substituir a prioridade dada ao lucro pela
necessidade de colocar o social e o ecológico na frente. Para isso é preciso
mudar a História, para isso é preciso uma, muitas revoluções.
Naturalmente surgirão muitos problemas
com a planificação e a transição: tensões, contradições e estruturas de poder
que tentarão dominar o processo democrático, mas essa é a natureza da
democracia, não nos dá garantias de segurança. Os mecanismos do mercado e a
ditadura tecnocrata, por outro lado, dão-nos a garantia da destruição.
O futuro de quem trabalha é essencial no
ecossocialismo, mas não cremos na visão positivista da magia tecnológica para
resolver a destruição ambiental ou na visão da ditadura ecológica autoritária.
Para resolver o problema do emprego, tem de haver a divisão definitiva das
noções de desenvolvimento e crescimento. Para isso, é necessário acabar com os
terríveis desperdícios do capitalismo, baseados na produção de coisas inúteis,
acabar com artifícios como a obsolescência programa, e focar o trabalho nas
verdadeiras necessidades do povo: água, comida, roupa, habitação, transporte,
um ambiente saudável. Para fazer as necessidades assentarem na realidade, a
publicidade comercial deve ser suprimida e substituída pela informação e
discussão. Temos de finalmente substituir o “ter” pelo “ser”, trabalhando muito
menos horas e procurando a satisfação pessoal através de actividades culturais,
desportivas, artísticas, eróticas e políticas, ao invés de termos como ambição
compulsiva a acumulação de objectos mortos e propriedade.
Acabada esta pandemia, será colocada à
frente dos povos de todo o mundo uma de duas inevitabilidades: Hayek ou Keynes,
economia da crueldade social e ambiental absoluta ou economia da destruição
ambiental absoluta. Nenhuma delas resolverá a crise ambiental e a crise
climática. Nenhuma delas é inevitável, mas por omissão serão o plano de sempre
que os dirigentes do capitalismo global e dos capitalismos nacionais colocarão
em marcha. O regresso à normalidade é o regresso ao caminho do colapso. Não
pode acontecer. A crise orgânica do capitalismo neoliberal tem de ser
transformada na crise final do capitalismo e isso não ocorrerá por omissão,
somente por acção.
É altura de, frente a todo o mundo, as e os ecossocialistas anunciarem uma
nova visão do mundo, dos seus objectivos e das suas estratégias para oferecer
um futuro à Humanidade, derrotando a miséria histórica, moral e biológica do
capitalismo.
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