É
sempre um gosto ler os artigos de opinião do Prof. Mário Vieira de Carvalho (*)
e o que apresentamos a seguir, retirado do Público de ontem, não é excepção.
Neste
texto, o tema de fundo é situação actual que se vive no Brasil onde, como muito
bem é referido, se assiste, num contexto bem definido, “à politização
da justiça e ao seu reverso: a judicialização da política”.
Aqueles que nunca se conformaram com os
resultados das últimas eleições e não querem ver implementadas quaisquer reformas
políticas, por mais tímidas que sejam, a favor dos grupos sociais mais desfavorecidos,
estão a lançar mão de todos os meios ao seu alcance – e são muitos – para derrubar,
de forma ilegal, o governo legitimamente escolhido pelo povo brasileiro.
Chamamos especial atenção para os dois últimos
parágrafos do texto.
No Brasil em 1964, os militares fizeram o frete
(sangrento) de entregar o poder, pelas armas, a grupos de interesses que tinham
deixado de conseguir mantê-lo pelo voto. Usaram as armas para impor um curso
político que eles próprios, enquanto cidadãos no pleno uso dos seus direitos,
não tinham conseguido fazer valer nas urnas. Com o seu poder de fogo impuseram
a vontade de uma fação à vontade de milhões expressa em eleições livres.
O ovo da serpente continua no choco, e há
democracias, umas mais do que outras, que não estão livres da tentação da
ditadura. Os sinais que vêm do Brasil são preocupantes. Gente nas ruas a
reclamar abertamente um golpe militar, a glorificar a ditadura e até a lamentar
que esta tenha poupado a vida a tantos dos seus opositores! Tais sintomas de
desespero não podem ser subestimados. É o desespero de quem se sente excluído
do poder democraticamente eleito, mas que, ao mesmo tempo, deixou de acreditar
na possibilidade de derrotar os adversários políticos em eleições livres. Para
esses, a democracia transformou-se num pesadelo.
Tanto maior é o desespero quanto é certo que os
mídia, na sua larga maioria sintonizados com a oposição ao atual governo,
também não têm conseguido traduzir a sua hegemonia ideológica em voto útil
expresso nas urnas.
É neste contexto que tem vindo a emergir no
Brasil, mas com um encarniçamento e um descaramento porventura extremados, um
fenómeno que é cada vez mais comum a outros regimes democráticos e merece
certamente ser estudado como um sinal dos tempos. Refiro-me à politização da
justiça e ao seu reverso: a judicialização da política.
Magistrados e juízes emergem como supremos
garantes da integridade cívica num contexto de corrupção generalizada. Não
admira. Se o próprio sistema financeiro mundial é hoje, afinal, um sistema
corrupto – todo ele assente na fraude fiscal (offshores)
e noutras formas de assalto caótico a recursos públicos e privados, humanos e
materiais, a que se dá eufemisticamente o nome de “competitividade” – não
admira que a sua natureza patológica se manifeste no vómito permanente de
“indícios” ou “suspeitas” de corrupção.
O cardápio tem sugestões para todos os gostos e
todas as oportunidades. É fácil levantar a suspeita, escolher o alvo e ajustar
o momento, pois que, com a desregulação e a opacidade das operações, começa
logo por ser difícil distinguir entre o real e o virtual. Estamos perante uma
teia complexa – um monstruoso criptograma – onde nada do que parece é.
Um sistema, de sua natureza tão corrupto, devia
ser colocado, ele próprio, no banco dos réus. Mas, isso escapa à alçada dos
tribunais. É um problema político – de política internacional –, porventura o
mais candente a nível mundial, pois é da sua resolução que depende a resolução
de muitos outros. Aos tribunais resta entreterem-se com alguns bodes
expiatórios, mascarando a causa-raiz, que continua incólume.
Uma coisa é, porém, investigar e punir casos de
corrupção. Outra, é alegar o combate à corrupção para satisfazer um desígnio
político-partidário. Também aqui, nem sempre o que parece é, sobretudo quando
os agentes judiciais fazem alarde público de “indícios” ou “suspeitas” e os
processos se desenrolam nos mídia quais telenovelas intermináveis.
Exibem como troféu a pessoa que dizem
investigar. Mas, o efeito pretendido é “queimá-la”, antes e independentemente
de qualquer prova. O poder de fogo do “indício” ou da “suspeita” anula o poder
do voto. Assemelha-se, nas suas consequências, ao de um golpe militar. Suprime
a separação de poderes. Politiza a justiça, degradando-a a mero instrumento
político-partidário. Judicializa a política, reduzindo o confronto
político-partidário à querela judicial, em vez de o centrar em ideias e
programas de governo.
(*) Professor Catedrático Jubilado
(FCSH-UNL)
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