O
advogado Domingos Lopes já habituou os leitores do Público a textos de grande
qualidade. O artigo de opinião que assina hoje no referido jornal não foge à
regra sendo até um dos seus melhores que já lemos. É notável a clareza com que
analisa os factos, a ponto de ser impossível negar-lhe a razão.
A
ponta de ironia que parece atravessar a frase com que inicia o texto – “há fenómenos
muito estranhos neste mundo” – e depois o seu desenvolvimento não nos podem
deixar indiferentes perante a forma como é manipulada a informação que nos
entra pelas casas adentro, todos os dias. Se tomarmos um pouco de atenção,
verificamos que há uma clara manipulação dos factos que acontecem no mundo
actual, onde é dada especial relevância a alguns em detrimento de outros, tão
ou mais importantes. É “estranho que não se estranhe” conclui Domingos Lopes.
Mas,
melhor que esta curta introdução, leia-se o texto.
Há fenómenos muito estranhos neste
mundo. Sempre houve. Desde há milénios. Porém, nesses tempos remotos o mundo
não se conhecia. Para lá do Cabo Bojador só havia água a ferver com monstros
que Gil Eanes despedaçou com vontade de aço e o mundo abriu-se ao mundo. Mas o
estranho não é só a estranheza do que acontece, mas o modo como o mundo encara
certas situações.
Na Venezuela, Nicolás Maduro foi eleito
por sufrágio direto e universal. A legitimidade do poder presidencial e a do
poder parlamentar resultaram de eleições livres. É a democracia a funcionar e a
liberdade de os cidadãos se manifestarem a favor ou contra o Presidente Maduro.
Há manifestações violentas. Há quem
queime adversários e outros que atiram pedras e cocktails molotov.
Alguns disparam. O cenário é de grande violência. Há quem não goste de Maduro,
como não gostavam de Chávez. Há quem goste do líder da oposição. Há crise. Há
falta de bens essenciais. O regime atribui essa falta à queda do preço do
petróleo, mas a verdade é que muita, muita gente não está satisfeita e
manifesta-se.
E, no entanto, a cada dia que passa,
Maduro eleito não passa de um perigoso ditador. Assim são envelopadas as
notícias que chegam daquele país que alberga a sorte de centenas de milhares de
portugueses que a não tiveram em Portugal.
Noutro quadrante, no reino saudita, os
grandes deste mundo vão vender armas, centenas de milhares de milhões de euros
em armas para sustentar o regime que não só interdita qualquer sinal de
manifestação como invade e bombardeia outros, designadamente o Iémen.
Mas além de não permitir qualquer tipo
de manifestação, viola brutalmente os mais elementares direitos humanos, como
seja o direito a rezar de acordo com a sua religião nos seus locais de credo
negado a mulheres e homens, o direito de cada mulher se vestir como entender, o
direito a circular, o direito a conduzir veículos, o direito a aceder a
cuidados médicos, direitos estes negados às mulheres.
Na Venezuela, o povo pode manifestar-se
e qualquer mulher pode vestir como quiser, circular livremente, conduzir carros
e ir à mesquita ou igreja ou sinagoga.
E é de uma grande estranheza que o
senador McCain considere que o grau de perigosidade da Rússia é muito superior
ao do Daesh. Assim, sem mais nem menos. Para o senador, os ataques terroristas
do Daesh em Manchester, Londres, Paris, Bruxelas ou São Petersburgo, os
castigos como a amputação de membros, a lapidação, a crucificação, o queimar
pessoas vivas fazem daquela organização uma entidade menos perigosa que a
Rússia… segundo ele por interferir nas eleições americanas.
Isto é, os EUA têm uma agência (CIA) só
para se ingerir nos assuntos internos de outros Estados, incluindo para
assassinar chefes de Estado. A Rússia, pelos vistos, segundo o senador, tenta
interferir para que os candidatos mais ao jeito de Moscovo ganhem eleições;
exatamente o que a CIA faz em todo o mundo, como recentemente na Ucrânia. É
estranho vindo do país que mais intervenções militares externas realizou.
Mas é ainda estranho que um país aliado
do ocidente possuidor da bomba nuclear (à má fila) tenha largos milhares de
prisioneiros palestinianos nas suas cadeias por se oporem à ocupação de territórios
árabes-palestinianos, enquanto, neste mundo, do lado de cá, se glorificam os
que combatem as autoridades russas ou chinesas ou venezuelanas, sendo que no
caso de Israel este Estado viola o direito internacional ao não reconhecer a
independência da Palestina, reconhecida pela comunidade internacional.
Nos telejornais aparecem diariamente
emigrantes portugueses vindos da Venezuela queixando-se da falta de alimentos e
medicamentos. E têm razão. Mas países vizinhos onde a maioria da população não
tem acesso a medicamentos nem a habitação, vivendo abaixo do limiar da pobreza,
nunca são nomeados. O diabo está na Venezuela. Não está nos cárceres
israelitas. Nem nas prisões a céu aberto das mulheres sauditas e dos homens que
eventualmente manifestem a sua discordância em relação ao regime.
Se se pensar que, no pior dos cenários,
na Venezuela há liberdade de reunião, associação, manifestação e que no reino
saudita não há o mínimo de liberdade, então cabe perguntar que mundo é este que
se inclina de modo tão “pragmático” para a Arábia Saudita e hostiliza a
Venezuela, como se fosse uma cruel ditadura?
Trump fez um “great”, “great”
negócio com os sauditas vendendo-lhe 110 mil milhões de dólares de armamento
para que este reino absolutista e impiedoso domine a região, mesmo à custa do
esmagamento do Iémen e do apoio aos jihadistas da Síria.
Há escassez de medicamentos na
Venezuela. É de facto um problema sério. Mas se houver medicamentos nas
farmácias da Arábia Saudita e não for permitido às mulheres comprá-los sem a presença
masculina, não é ainda mais estranho?
A crise venezuelana explica a escassez.
Haverá eleições e o povo escolherá. No reino saudita há medicamentos e há quem
não os possa comprar, tendo dinheiro. E não há eleições. Há decapitações à
sexta-feira.
Macron, em Versalhes, desembainhou a sua
argumentação justamente junto de Putin acerca da perseguição aos homossexuais
na Chechénia. Será que faria o mesmo na presença do rei saudita, onde os
homossexuais podem ser condenados à morte?
Os países da União Europeia, em vez de
percorrerem caminhos que apontem, seja onde for, para a proteção dos direitos
humanos, vão à compita com os EUA para vender armas e obter certas
matérias-primas aos “nossos” ditadores. Estranho que não se estranhe.
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