A
recente tragédia com origem nos incêndios ocorridos na região centro do país de
que resultaram, até ao momento, 64 mortos, tem feito correr muita tinta na
comunicação social escrita, em alguns casos com análises superficiais e para
consumo imediato mas noutros em que se procuram as razões profundas para o que
sucedeu. Está neste último caso um artigo de opinião recolhido no Expresso do
passado sábado e que reputamos de muito interessante. O seu autor, Nuno Pinto,
Professor de planeamento urbano da Universidade de Manchester, analisa, sob o
ponto de vista social, os incêndios de Pedrógão Grande e da Torre Grenfell, não
tendo dúvidas em afirmar que as duas tragédias resultam “claramente da combinação
da austeridade com o aumento da desigualdade”, intensificadas recentemente com
as duras medidas tomadas pelos governos de direita, tanto em Portugal como no
Reino Unido. É óbvio que foram os pobres os mais afectados. É inconcebível que
ambas as tragédias tivessem a dimensão que tiveram caso ocorressem em zonas “nobres”
das maiores cidades portuguesas ou em “bairros caros de Londres”.
Em apenas quatro dias morreram 64 pessoas no incêndio
de Pedrógão Grande e mais de 70 no incêndio da Torre Grenfell em Londres. Ambas
as tragédias são inadmissíveis e são exemplos flagrantes dos tempos que
vivemos, ilustrando as consequências da austeridade e do aumento da
desigualdade que atingem as populações mais pobres. Ambas as tragédias
dificilmente teriam esta dimensão no centro de Lisboa ou nos bairros caros de
Londres.
Em ambos os casos há uma falha inquestionável do
Estado em proteger os cidadãos. Em ambos os casos estes cidadãos pertencem, por
razões diferentes, a classes não favorecidas pela sociedade e também pelo
Estado.
Em Londres, os mais pobres viram a sua habitação
social ser embelezada com materiais mais baratos (e inflamáveis), resultado da
privatização desregulada de serviços públicos (a gestão da torre estava
entregue a uma empresa que não respondia às necessidades dos habitantes) e dos
cortes em políticas sociais (redução dos inspetores de habitação).
Em Pedrógão Grande, as pequenas comunidades rurais
(destes lugarejos como muitas vezes são apelidados pelas populações urbanas e
pelos media) viram o fogo matar os seus membros e consumir as suas casas sem
que houvesse capacidade de intervenção das forças de socorro, que por muita
vontade que tenham não conseguem subverter a falta de pessoal e a falta de
recursos que sucessivos cortes trouxeram aos seus magros orçamentos.
Houve um degradar da capacidade institucional do
Estado ao reduzir e retalhar as competências da floresta em múltiplos
organismos, denotando um claro desprezo pela infraestrutura de conhecimento
técnico existente no Estado. Ao mesmo tempo, a classe política quer a
contribuição do corpo de especialistas científicos e técnicos para o desenho
das políticas públicas de ordenamento territorial e florestal e de prevenção,
mas rejeita esta abordagem (de evidence-based policy), privilegiando
sucessivamente o combate, como se deduz da não implementação da maior parte das
ações do PNDFCI. Este enfoque no combate está ilustrado no aumento do
investimento nos corpos de bombeiros, mais 26% de 2006 a 2015, acompanhado pela
impressionante diminuição do número de bombeiros –— no mesmo período o país
perdeu mais de 13 mil efetivo (menos 31%!), resultado talvez do despovoamento
do interior.
A dimensão das tragédias em Londres e em Pedrógão
Grande resulta claramente da combinação da austeridade com o aumento da
desigualdade.
Austeridade: em Londres, os apartamentos estavam
cobertos de material barato e inflamável; em Pedrógão Grande, as florestas
deixaram de ser geridas pelos antigos corpos florestais do Estado e as
corporações de bombeiros combatem o fogo sem recursos humanos suficientes para
proteger as populações.
Desigualdade: em Londres, os apartamentos estavam
sobrelotados (o número real de vítimas é desconhecido); em Pedrógão Grande, a
interioridade e o desinvestimento na floresta despovoam e isolam ainda mais as
pequenas comunidades.
Austeridade: menos conhecimento no desenho das
políticas públicas, menor contributo de especialistas.
Desigualdade: nas zonas urbanas há planos de
emergência para grandes fogos, nas zonas rurais não.
É um círculo vicioso. A austeridade cortou serviços
fundamentais às populações mais desfavorecidas gerando ainda mais desigualdade,
social no caso de Londres, territorial e também social no caso de Pedrógão
Grande.
Só podemos esperar que o atual interesse no interior
não seja mais uma paixão e se transforme numa iniciativa perene que congregue
todo o espectro político para um verdadeiro combate às gritantes desigualdades
territoriais em Portugal.
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