Muito
dificilmente um visitante deste blog poderá alguma vez na sua vida conduzir um
Bentley ainda que seja apenas emprestado por um amigo. Provavelmente, a maioria
dos frequentadores deste blog nem sequer ainda viu um Bentley, ao vivo e a
cores, a circular neste país. Ainda que se trate do “modelo de entrada” desta
famosa marca, estamos perante um brinquedo cujo preço pode rondar os 300 mil
euros (informação recolhida no artigo seguinte). Por isso mesmo, é bem provável
que em Portugal não haja muita gente que possa comprar um Bentley.
Pois
bem, o artigo seguinte assinado por Bárbara Reis no Público de hoje, diga-se em
abono da verdade, atravessado por um fino tom irónico que lhe dá uma força
suplementar, é uma curta história cujos principais protagonistas são um Bentley
e um ex-autarca do PSD “detido esta semana por suspeita de
crimes de corrupção, prevaricação, peculato e tráfico de influência”.
Longe de nós qualquer intenção de tirar
conclusões precipitadas mas como nos estamos a aproximar de eleições
autárquicas, como diz o povo “antes prevenir do que remediar”. Prevenir, numas
eleições, é votar em candidatos que ofereçam todas as garantias de nunca
virem a servir-se dos cargos para obterem benefícios em proveito próprio, nem
sequer haver a mais remota possibilidade de acusação por parte do mais
encarniçado adversário político.
O texto original contém várias
hiperligações que nós retirámos para o tornar mais leve.
Em Oliveira de Azeméis, um Bentley não precisa de ser
verde alpino metálico para dar nas vistas. Nem de ser um Bentley Mulsanne, o
modelo topo de gama que custa quase meio milhão de euros.
Um Bentley é um Bentley e em Oliveira de Azeméis — que
tem 20 mil pessoas e 27 quilómetros quadrados — terá sido difícil ao autarca
Hermínio Loureiro atravessar a Avenida Dr. António José de Almeida a caminho do
Teatro Caracas, refundado por um antigo emigrante da Venezuela, sem
impressionar.
Hermínio Loureiro, que foi deputado, dirigente
nacional do PSD, secretário de Estado do Desporto de Pedro Santana Lopes e
presidente da Câmara de Oliveira de Azeméis entre 2009 e 2016, foi detido esta
semana por suspeita de crimes de corrupção, prevaricação, peculato e tráfico de
influência. Com ele, foram também detidos Isidro Figueiredo, que o sucedeu na
autarquia, um funcionário da câmara e quatro empresários. A Polícia Judiciária
arrestou 15 imóveis, seis milhões de euros e seis carros de luxo. Um deles é um
Bentley Continental GT, o que os especialistas definem como “modelo de
entrada”, ou seja, o Bentley mais barato. Custa entre 234 mil e 314 mil euros.
Percebe-se o gosto do ex-autarca. Há muitas pessoas que
têm um Bentley. O que Hermínio Loureiro guiava é bem mais discreto do que o
Bentley cor-de-rosa de Paris Hilton, o Bentley Mulsanne de David Beckham, o
Bentley descapotável de Schwarzenegger e Sylvester Stallone, ou o Bentley
Flying Spur do príncipe William. Nada a dizer sobre isso. E nada a dizer sobre
quem ganha para comprar um Bentley. Mas quando um autarca ganha cerca de 50% do
vencimento-base atribuído ao Presidente da República, ou seja, mais ou menos
4000 euros brutos, não deixa de ser curioso que tenha um carro igual ao de
Mario Balotelli, o célebre jogador de futebol italiano que não é conhecido por
ser pobre.
Desde que foi eleito, o Presidente Marcelo Rebelo de
Sousa — que na campanha presidencial percorreu o país num carro que, não sendo
um boguinhas, é o chamado “carro utilitário” — tem pedido mais transparência na
política e menos “compadrio com o poder económico”. No seu discurso do 5 de
Outubro definiu a “ética republicana” deste modo: “De cada vez que um
responsável público se permite admitir dependências pessoais ou funcionais, se distancia
dos governados, alimenta clientelas, redes de influência e de promoção social,
económica e política, aos olhos do cidadão comum é a democracia que sofre.”
Não sabemos se Hermínio Loureiro prevaricou ou
traficou influência — e infelizmente vamos ter de esperar muito tempo para ter
respostas. Mas sabemos que em Portugal não existe sequer uma lei que
criminalize o enriquecimento injustificado, nem mesmo uma simples lei que
defina regras sobre os valores máximos dos presentes que os titulares de cargos
políticos podem receber. Lembro-me de há uns anos Jaime Gama, quando era
Presidente da Assembleia, ter perguntado quantos euros custa uma “vantagem
indevida” e ter ficado sem resposta. Na rentrée de 2010, o Parlamento
aprovara novas regras de combate à corrupção e criara o “crime de recebimento
indevido de vantagem” para os funcionários públicos, punido com uma pena de
cinco anos. Mas não se definiram valores.
Agora, sete anos depois, a comissão parlamentar para o
reforço da transparência parece estar prestes a chegar a consenso para aprovar
uma norma geral que obrigue o Parlamento, o Governo, o poder regional e local e
a administração pública a fazerem
códigos de conduta que incluam o valor dos presentes a
partir do qual as ofertas devem ser devolvidas ou entregues ao Estado. Mas
arriscamo-nos a ficar sem valores — outra vez. A ideia é que não haja um número
absoluto nacional e, em vez disso, cada órgão identifique o seu limite.
Confesso que não compreendo porque é que é diferente
oferecer uma obra de arte, um carro ou uma viagem de férias a um deputado da
Assembleia da República ou a um vereador de uma pequena freguesia rural.
Condiciona mais ou condiciona menos? Um quadro do Picasso condiciona menos em
Lisboa do que em Oliveira de Azeméis, onde não há um museu de arte
contemporânea? Uma caixa de robalos vale mais no interior porque o mar está
longe? Dez euros valem mais no Congo do que na Suíça. Mas dentro de Portugal a
diferença não justifica empurrar mais um vez este problema com a barriga.
Em teoria, todos sabemos o que é uma “mera cortesia”.
Na prática, porém, a ausência de um valor presta-se a mil interpretações. O CDS
propôs um tecto de 150 euros e o Bloco de Esquerda de 60. Mais do que discutir
qual valor protege melhor a democracia e a independência (na SONAE,
proprietária do PÚBLICO, o tecto são 100 euros e no governo de António Costa
são 150), seria bom concordar com a ideia simples de que deve haver um número.
Não é por acaso que o tema não nos abandona. Quem não se lembra do presente
chamado "liberalidade" em forma de 14 milhões de euros que Ricardo
Salgado recebeu de um amigo construtor civil? Uma lei com um valor fixo não
acabará com a corrupção. Mas regras claras e espartanas fazem bem à democracia.
Já agora, uma última questão. Esta lei — e lamento se
induzi o leitor em erro — nada tem a ver com Hermínio Loureiro. O “seu” Bentley
azul não era seu. Está em nome de um empresário seu conhecido. O ex-presidente
da Câmara só andava com ele.
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