Quem
segue a realidade espanhola desde há décadas já chegou facilmente à conclusão
de que a implosão do país vizinho, primeiro, e o fim da monarquia, a seguir,
são uma questão de tempo. A luta armada levada a cabo no País Basco foi um
forte cimento que teve o efeito contrário ao dos seus promotores, contribuindo,
assim, para uma ilusão de unidade dentro do reino espanhol. Isto significa que o
desejo do exercício da autodeterminação de várias nações do reino permaneceu intacto
mas à espera do momento próprio para se manifestar. Para já, temos a Catalunha a
desafiar o poder central mas País Basco e Galiza poderão ser os seguintes. É um
desejo que os catalães têm há muito tempo – basta olhar-se à história –
independentemente do que está escrito na constituição de Espanha.
O
primeiro-ministro Rajoy tem vindo a tratar da situação na Catalunha da forma
menos recomendável possível para quem deseja manter a unidade de Espanha. Comporta-se
mais como um aliado dos independentistas…
Muita
tinta ainda vai correr sobre o que actualmente se passa na Catalunha mas há uma
quase unanimidade no sentido de que a questão de fundo é política e não
jurídica. E o pior que pode acontecer é que se entre num impasse e seja a rua a
resolver. Quando assim sucede, como bem sabemos, as consequências podem ser
muito dramáticas…
Com o título “Autodeterminação
e direito: a propósito da Catalunha”, o texto seguinte que transcrevemos do
Público de hoje leva-nos a concordar com o seu autor (*) quando ele afirma que “falar de
primazia do direito funciona para os dois lados, já que, não se reconhecendo a
sua justiça, não há direito possível de ser aplicado”.
A história da Europa é uma história de
fragmentações e uniões sucessivas. Povos submetidos, povos submissores. Povos
erigidos em nações e nações dissolvidas em estados. As duas grandes guerras do
século XX nasceram na Europa em boa parte alimentadas por sentimentos
nacionalistas. E o “fim da história” neste tema que os eventos da segunda
metade do século XX antecipavam de forma optimística – criação das Nações
Unidas e da sua Carta, criação do Conselho da Europa, criação e alargamento
progressivo da União Europeia, fim da URSS e do “bloco de Leste”, com as
subsequentes independências e estabilização dos estados em causa – pode bem
estar a chegar ao fim do seu prazo de validade. Essa é a natureza da história e
dos homens, não há volta a dar.
Tendo isso em conta, no entanto, deve
também assumir-se que falar de autodeterminação hoje é falar de um conceito que
o direito circunscreve. E circunscreve em boa parte para evitar a resposta
histórica às pretensões dos povos: a guerra. Essa é uma novidade do século XX,
a ultrapassagem do conceito romântico, manipulável e frequentemente sanguinário
da autodeterminação dos povos e a sua recondução como princípio ao plano do
direito internacional. E é tanto assim que as próprias Nações Unidas assentam
neste princípio, a ser assumido pelos povos e não na realidade mais flexível
que é a realidade dos estados.
Não haja dúvidas, portanto, de que a
resposta às reclamações de base nacionalista, terá de ser dada também pelo
direito, sob pena de o casuísmo, a vontade circunstancial do mais forte e a
violência levarem sempre a melhor.
Assim, o direito circunscreve-o, por um
lado, reconhecendo-o como fundamental para a comunidade internacional. A
autodeterminação dos povos é um dos pressupostos em que assenta o nosso modelo
pós-Segunda Guerra, que legitimou as descolonizações e tem levado ao
reconhecimento de diversos novos estados desde então (desde o Kosovo ao Sudão
do Sul, passando pela questão palestiniana), com sucessos e insucessos de
diversa ordem. E a Europa conhece igualmente bem o tema, apesar de não
aparecerem nas páginas dos jornais referências a Brzcko ou à Transnístria, para
dar dois exemplos distintos.
Por outro lado, recorde-se que para o
direito internacional não há também uma relação absolutamente necessária entre
autodeterminação dos povos e independência de um estado. Essa consequência pode
existir ou não, consoante as circunstâncias. Existem diversas gradações e estatutos
possíveis. Em todo o caso, é óbvio que nunca poderá ser uma qualquer ideia de
auto-suficiência económica a determinar um qualquer “direito à independência” -
o que seria de grande parte dos estados no Mundo se assim fosse, num contexto
de quase absoluta interdependência? Ainda não chegámos ao ponto de fazer
depender a independência de um sólido estatuto de credor avalizado pelas
agências de rating...
O que nunca pode ser feito, parece-me, é
tratar uma questão deste nível como um simples “caso de polícia”, o que foi
feito pelo governo espanhol no referendo catalão. Com razão ou sem ela, há ali
uma situação que tem de ser enfrentada com clareza, visão e respeito pelos
direitos dos povos em causa, nunca com uma indolência imperial assente na
força... O paralelo com a realidade escocesa mostra as diferenças, falando de
um referendo que foi seguramente o grande inspirador e uma forte motivação para
a Catalunha. Simplesmente recusar-se a lidar com a realidade, quando ela
transcende uma mera elite política a aproveitar uma oportunidade, o que os
números do referendo atestam, é legitimar quase tudo de futuro.
A confiança do governo espanhol nas
posições da comunidade internacional e da União Europeia como garante de que
tudo ficará na mesma pode não chegar para ultrapassar a questão. E, mesmo que
isso sustenha uma independência formalmente válida, como lidar com os factos
entretanto? E por quanto tempo isso funcionará? Falar de primazia do direito
funciona para os dois lados, já que, não se reconhecendo a sua justiça, não há
direito possível de ser aplicado.
(*) Miguel
Romão, Professor da Faculdade de
Direito da Universidade de Lisboa
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