A
história é feita pela vontade colectiva dos povos e “nenhuma constituição tem o
poder de a cristalizar”, em qualquer parte do mundo. Tem sido sempre assim,
qualquer que seja o regime em vigor, e onde quer que seja a localização geográfica.
É claro que, em democracia, tudo se torna mais fácil de resolver através do
voto. Dois exemplos bem recentes tiveram lugar no Reino Unido e no Canadá cujo
resultado é bem conhecido e onde o veredicto popular apontou no sentido de se
manter a situação vigente e tudo ficou resolvido sem mais problemas.
No
que diz respeito à actual situação da Catalunha relativamente ao Estado
espanhol, não se entende por que razão o povo catalão não está, por assim
dizer, autorizado a decidir o seu futuro de forma democrática e transparente,
chegando-se ao ponto de o Governo de Madrid ordenar uma violenta repressão
sobre aqueles que queriam manifestar a sua vontade através do voto.
Não
é a primeira vez que a deputada bloquista Joana Mortágua escreve sobre a
questão catalã e hoje assina um artigo de opinião no Público versando o mesmo
tema. Transcrevemo-lo a seguir.
Há meses que a Catalunha nos tem em
suspense pelas cenas dos próximos episódios. Ao choque geral perante a violenta
repressão no dia do referendo, sucedeu-se uma Declaração de Independência em
modo de pausa à procura do diálogo. Com a bola do lado de Rajoy, o próximo
passo lamentável seria recusar o diálogo proposto por Puigdemont e decidir
ativar o Artigo 155.º que retira a autonomia às instituições da Catalunha.
É evidente que a humilhação inflamaria a
Catalunha, pelo que seria de esperar bom senso. Infelizmente isso é coisa que
não tem reinado na monarquia vizinha. Mariano Rajoy ficou orgulhoso pelo ataque
de dia 1 de outubro e concluiu que o Estado de Direito tinha “desbaratado” o
referendo. É impossível ignorar o que isso significa. No assalto à Catalunha, o
governo de Madrid está apostado em continuar a desbaratar a democracia.
Apesar disso, não falta quem justifique
Rajoy utilizando o argumento democrático, afirmando que a reclamação de
autodeterminação perde validade quando é pretendida dentro de um Estado
democrático. O argumento ignora a história e a lógica. O século XX já desmentiu
a tese com exemplos de países que se emanciparam de democracias, e não consta
que a Inglaterra e o Canadá não sejam Estados de Direito democráticos apesar
dos referendos na Escócia e no Quebec.
Ignora também a lógica quando exige que
um processo de autodeterminação da Catalunha se dê no quadro da legalidade
constitucional do Estado que quer abandonar. É simplesmente absurdo. E não se
trata de discutir se a Constituição pós-franquista de 1978 tem sido mãe ou
madrasta para os catalães, como se fosse um problema de má consciência ou
ingratidão. Apenas interessa se ela reconhece ou não o direito à
autodeterminação e, no caso, não.
A Constituição espanhola foi
ultrapassada pela vontade democrática do povo. E não vale a pena berrar com o
papel na mão, porque, boa ou má, nenhuma Constituição tem o poder de
cristalizar a história a despeito da realidade das aspirações democráticas dos
povos. O direito de um povo a “determinar livremente sua condição política” é
ele próprio fonte de legitimidade democrática, independentemente do quadro
constitucional em que se realiza.
Por fim, há em toda esta história um
profundo e irresponsável desprezo pela questão nacional catalã. Trata-se uma
identidade como se fosse uma birra contra o Estado central. A questão nacional
pode até ser manipulável, mas não se inventa a la carte. A Catalunha é
uma realidade social e política secular que, associada a outras questões, pode
criar movimentos de ruptura com o Estado espanhol.
A insistência em fingir que se ignora
este facto é responsável por grande parte do conflito que existe hoje na
Catalunha. Ao contrário do que diz a propaganda, sucessivos Governos do PP e do
PSOE sempre tentaram reduzir a questão nacional a uma expressão cultural,
recusando à Catalunha o direito a decidir sobre si própria e a sua relação com
o Estado espanhol. Foi assim que os catalães viram o seu Estatut[1]
inutilizado pelo Tribunal Constitucional apesar de ter sido referendado na
Catalunha com mais de 70% dos votos e já depois de ter sido aprovado em Madrid.
O paternalismo oficial que trata o
sentimento nacional catalão como os pais tratam a rebeldia juvenil (“quando
cresceres isso passa”) não é compatível com a bondade democrática com que agora
pretendem reescrever a atitude do Estado espanhol. Ao PP escorrega-lhe o pé
para o sentimento quando insinua que podia acontecer a Puigdemont o mesmo que
aconteceu a Companys, primeiro presidente da Catalunha fuzilado pelos
franquistas.
Podem torcer o argumento democrático à
vontade. O espanholismo tem apenas uma razão. Manuel Castells resumiu-a da
seguinte forma: “La existencia de España, como la existencia de Dios, no se
somete a votación.”
Funda-se aqui a minha divergência com
quem se opõe ao processo de autodeterminação da Catalunha. Espanha, como
qualquer outro Estado soberano, não só tem de se submeter a votação como não
pode usar a democracia como argumento para oprimir o direito democrático de
parte do seu território. Como disse alguém com piada, “cheguei à conclusão de
que a Constituição espanhola é inconstitucional” porque rejeita o direito
universal à autodeterminação.
É indiferente saber se eu defendo ou não
a independência da Catalunha. Estou do lado dos que aplaudiram o catalão que
foi votar no referendo embrulhado numa bandeira espanhola. Defendo o direito do
povo catalão a decidir como expressão máxima da democracia e da liberdade. É
por isso que se expõe facilmente ao ridículo a tentativa do eurodeputado Francisco Assis
de comparar a minha posição com a de Nigel Farage, líder da extrema-direita
inglesa.
Quando submetemos direitos fundamentais
às hipocrisias de conveniência damos por nós a desculpar os espancamentos de
quem apenas queria votar e a repressão armada como resposta à vontade popular.
O que se trata aqui é de saber se a Europa (entendida como um conjunto de
democracias) consegue conviver com os direitos democráticos dos povos ou se os
vai desbaratar na repressão de processos como o da Catalunha. Até agora os
exemplos não têm sido brilhantes.
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