Há momentos da história dos povos em que os acontecimentos se sucedem a tal
ritmo que factos ocorridos num curto espaço de tempos se ultrapassam
rapidamente uns aos outros em termos de actualidade. É o que por estes dias poderá
acontecer no que diz respeito aos acontecimentos que se estão a desenrolar na Catalunha
e que têm por base a reivindicação desta comunidade autónoma da Espanha situada
no nordeste da Península Ibérica da realização de um referendo para decidir se
deve tornar-se um país independente.
Um artigo de opinião escrito há três dias já pode estar desactualizado hoje
mas pensamos que o que apresentamos a seguir não correrá esse risco.
O texto seguinte constitui parte de um excelente artigo de opinião do Prof.
Boaventura Sousa Santos que transcrevemos do Público do passado dia 28 de Setembro,
onde o director do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra disserta
sobre os pressupostos em que deveria consistir a posição da esquerda sobre o
referendo na Catalunha. Vale a pena lê-lo com muita atenção.
No mesmo ano em que Portugal se libertou
dos Filipes, 1640, a Catalunha fracassou nos mesmos intentos. Claro que
Portugal era um caso muito diferente, um país independente há mais de quatro
séculos e com um império espalhado por todos os continentes. Mas, apesar disso,
havia alguma afinidade nos objectivos e, aliás, a vitória de Portugal e o
fracasso da Catalunha estão mais relacionados do que se pode pensar. Talvez
seja bom lembrar que a Coroa de Espanha só reconheceu a “declaração unilateral”
de independência de Portugal 26 anos depois.
Acontece que, sendo essas as questões
mais importantes, não são lamentavelmente as mais urgentes neste momento. As
questões mais urgentes são as questões da legalidade e da democracia. Delas me
ocupo aqui por interessarem a todos os democratas da Europa e do mundo. Tal
como foi decretado, o referendo é ilegal à luz da Constituição do Estado
espanhol. Em si mesmo não pode decidir se o futuro da Catalunha é dentro ou
fora da Espanha. O Podemos tem razão ao declarar que “não aceita uma declaração
unilateral de independência”. Mas a complexidade emerge quando se reduz a
relação entre o jurídico e o político a esta interpretação. Nas sociedades
capitalistas e assimétricas em que vivemos há sempre mais de uma leitura
possível das relações entre o jurídico e o político. A diferença entre essas
leituras é o que distingue uma posição de esquerda de uma posição de direita
contra a declaração unilateral de independência. Uma posição de esquerda sobre
as relações entre o jurídico e o político assentaria nos seguintes
pressupostos.
Primeiro, a relação entre democracia e
direito é dialéctica e não mecânica. Muito do que consideramos legalidade
democrática num certo momento histórico começou por ser uma ilegalidade
cometida como aspiração a uma democracia melhor e mais ampla. Os processos
políticos têm de ser analisados em toda a sua dinâmica e amplitude e não podem
ser reduzidos à conformidade ou não com a lei do momento.
Segundo, os governos de direita
neoliberal têm pouca legitimidade para se arvorarem em defensores estritos da
legalidade, porque as suas práticas assentam frequentemente em sistemáticas
violações da lei e da Constituição. Não me refiro apenas à corrupção.
Refiro-me, no caso espanhol, por exemplo, à violação da lei da memória (contra
os crimes do franquismo), do estatuto das autonomias no que respeita às
transferências financeiras e investimentos conjuntos, ou da garantia
constitucional do direito à moradia. Refiro-me também à aplicação de medidas de
excepção sem prévia declaração constitucional do estado de excepção. A esquerda
deve ser cuidadosa em não mostrar cumplicidade com esta concepção da
legalidade.
Terceiro, a desobediência civil e
política é um património inalienável da esquerda. Sem ela, por exemplo, não
teria sido possível há uns anos o movimento dos indignados e as perturbações na
ordem pública que causou. De uma perspectiva de esquerda, também a
desobediência tem de ser avaliada dialecticamente, não apenas pelo que é agora
mas pelo que significa como investimento num futuro melhor. Tal avaliação não
compete exclusivamente aos que desobedecem (e que normalmente pagam um alto
preço por isso) mas a todos os que podem beneficiar no futuro. Ou seja, a
pergunta fundamental é esta: pode o acto de desobediência contribuir com grande
probabilidade para que no futuro a comunidade política no seu conjunto seja
mais justa e mais democrática?
Quarto, o referendo da Catalunha
configura um acto de desobediência civil e política e, como tal, não pode ter
directamente os efeitos políticos que se propõe. Mas isto não quer dizer que
não tenha outros efeitos políticos legítimos. Pode mesmo querer dizer que é a
condição sine qua non para que os seus efeitos políticos ocorram no
futuro uma vez respeitadas as necessárias mediações jurídicas e políticas. O
movimento dos indignados não conseguiu realizar os seus propósitos de
“democracia real já!”, mas não restam dúvidas de que, graças a ele, a Espanha é
hoje um país mais democrático. A emergência do Podemos, de outros partidos de
esquerda autonómicos e das Mareas (movimentos de cidadania) são uma prova,
entre outras, disso.
A partir destes pressupostos, uma
posição de esquerda sobre o referendo da Catalunha poderia consistir no
seguinte. Primeiro, declarar inequivocamente que o referendo é ilegal e que não
pode produzir os efeitos que se propõe (declaração feita). Segundo, declarar
que isso não impede que o referendo seja um legítimo acto de desobediência e
que, mesmo sem ter efeitos jurídicos, os catalães têm todo o direito de se
manifestar livremente no referendo. E esta manifestação é, em si mesma, um acto
político democrático de grande transcendência nas circunstâncias actuais
(declaração omitida).
Esta segunda declaração seria a que
verdadeiramente distinguiria uma posição de esquerda de uma posição de direita.
E teria as seguintes implicações. A esquerda denunciaria o Governo nas
instâncias europeias e demandá-lo-ia judicialmente nos tribunais europeus por
violar a Constituição ao aplicar medidas de estado de excepção sem passar pela
sua declaração legal. A esquerda sabe que a cumplicidade de Bruxelas com o
governo central se deve exclusivamente ao facto de o governo pertencer à
direita neoliberal. E também sabe que defender a lei sem mais é moralista e de
nenhum efeito, uma vez que, como referi, esta direita só respeita a lei (e a
democracia) quando serve os seus interesses. A esquerda organizar-se-ia para
viajar em massa e a partir das diferentes regiões à Catalunha no domingo para
presencialmente apoiar nas ruas e nas praças os catalães no exercício pacífico
do seu referendo e ser testemunha presencial da eventual violência repressiva
do Governo central. Procuraria obter a solidariedade de todos os partidos de
esquerda da Europa, convidando-os a viajarem até Barcelona e a serem
observadores informais do referendo e da violência repressiva, se ela viesse a
ocorrer. Manifestar-se-ia pacífica e indignadamente (repito, indignadamente)
pelo direito dos catalães a um acto público pacífico e democrático.
Documentaria todas as violações da legalidade e apresentaria queixa nos
tribunais. Se o referendo fosse violentamente impedido seria claro que o tinha
sido sem qualquer cumplicidade da esquerda.
No dia seguinte ao referendo, de nulo
efeito jurídico e qualquer que fosse o resultado, a esquerda estaria numa
posição privilegiada para ter um papel único na discussão política que se seguiria.
Independência? Mais autonomia? Estado federal plurinacional? Estado livre
associado, distinto da caricatura que tragicamente Porto Rico representa? Todas
as posições estariam na mesa e os catalães saberiam que não precisariam das
forças de direita locais, as quais historicamente sempre se conluiaram com
Madrid contra as classes populares da Catalunha, para fazer valer a posição que
a maioria entendesse ser melhor. Ou seja, os catalães e os europeus e os
democratas do mundo conheceriam então uma nova possibilidade de ser de esquerda
numa sociedade democrática plurinacional. Seria uma contribuição dos povos e
nações de Espanha para a democratização da democracia em todo o mundo.
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