Perante a decisão do Parlamento da Catalunha,
no sentido de convocar um referendo para determinar o futuro daquela comunidade
autónoma de Espanha, levou o Governo de Madrid a tomar várias decisões, qual
delas a mais tresloucada, no sentido de impedir a consulta democrática da população.
Até agora, por assim dizer, tem valido por parte de Rajoy, com o apoio do Rei, uma
“multiplicidade de atropelos aos direitos cívicos, políticos e humanos” numa
atitude completamente inadmissível por parte de um país ocidental onde vigora
uma democracia, cremos nós, consolidada.
Para
o cidadão comum está a verificar-se um silêncio ensurdecedor por parte das instituições
europeias que aparecem como meras espectadoras perante grosseiras violações
diárias das regras democráticas dentro de um país da UE. A maioria do nosso Parlamento
também achou que não devia condenar as acções violentas ordenadas pelo Governo
de Rajoy na Catalunha. Para que conste…
Como
não podia deixar de ser, muitas vozes se vão levantado contra este estado de
coisas. Entre elas salientamos o seguinte artigo de opinião assinado por Manuel
Loff e Fernando Rosas, que veio à estampa no Público de hoje e subscrito por dezenas
de figuras públicas das mais variadas áreas.
O Parlamento da Catalunha,
democraticamente eleito há dois anos, convocou para o dia 1 de outubro um
referendo de autodeterminação através do qual se pretendia decidir do futuro da
Catalunha, uma "nacionalidade" no seio do Estado espanhol segundo os
termos fixados pela Constituição de 1978. Para nós, a independência da
Catalunha, a manutenção do atual estado de coisas ou qualquer outra solução
política é uma questão que deve ser decidida pelos catalães, sobre a qual não
nos pronunciamos. Mas, cidadãos de uma República cuja Constituição estabelece
que "Portugal reconhece o direito dos povos à autodeterminação e
independência e ao desenvolvimento, bem como o direito à insurreição contra
todas as formas de opressão" (art. 7.º), não podemos ficar indiferentes
perante a forma tão evidente pela qual as autoridades espanholas (sejam elas o
Governo, a polícia ou os tribunais) desrespeitam o direito do povo catalão a
"dispor de si próprio" e, "em virtude deste direito, determinar
livremente o seu estatuto político e assegurar livremente o seu desenvolvimento
económico, social e cultural", como estabelecem tratados internacionais
assinados pelo próprio Estado espanhol (e todos os Estados europeus) como o
Pacto Internacional dos Direitos Cívicos e Políticos (1966). E não calamos a
nossa indignação perante a multiplicidade de atropelos aos direitos cívicos,
políticos e humanos que, sobre a questão catalã e por intermédio da polícia, do
Ministério Público e dos tribunais, o Governo espanhol cometeu e continua a
cometer na Catalunha.
Contra a liberdade de associação, e
ainda antes do referendo de domingo passado, a polícia espanhola cercou a sede
de um partido político e fez buscas em tipografias e meios de comunicação para
apreender propaganda eleitoral, encerrou centenas de páginas web,
designadamente de associações cívicas, como a Assemblea Nacional de Catalunya
ou a Ómnium Cultural, acusou dirigentes e ativistas políticos de crimes de
desobediência e de "sedição", cuja pena pode ascender até 15 anos de
prisão. Face a um movimento cívico perfeitamente pacífico, e por não confiar na
polícia catalã (denunciada por "desobediência" no próprio dia do
referendo), o Governo espanhol enviou dez mil polícias para a Catalunha, num
ato deliberado de intimidação que não tem precedentes em 40 anos de democracia.
Contra a liberdade de expressão, a
polícia espanhola apreendeu material político relativo ao referendo, impediu a
realização de debates sobre o referendo dentro de qualquer instituição pública,
seja ela de âmbito central, regional ou municipal, e mandou encerrar contas nas
redes sociais de membros do Governo catalão ou de qualquer cidadão que se
atreva a divulgar a localização de assembleias de voto!
Contra os direitos cívicos e políticos,
a polícia espanhola prendeu antes do referendo altos funcionários do Governo
catalão (e ameaçara antes ainda do referendo prender o seu próprio presidente),
ameaça com multas exorbitantes milhares de diretores de escolas e funcionários
públicos e três quartos dos autarcas democraticamente eleitos da Catalunha, por
sua vez ameaçados de prisão e de perda de mandato, numa atitude de intimidação
que não tem paralelo nos últimos 40 anos. A situação antes do dia 1 de outubro
era já tão grave que, no dia 28 de setembro, em Genebra, o próprio Conselho dos
Direitos Humanos das Nações Unidas se mostrou "preocupado com as medidas a
que estamos a assistir porque violam direitos individuais fundamentais,
censurando informação pública e impedindo o debate num momento crítico para a
democracia em Espanha". Como este organismo da ONU, entendemos que
"as autoridades espanholas têm a responsabilidade de respeitar os direitos
cívicos e políticos que são essenciais nas sociedades democráticas".
Os piores receios confirmaram-se quando,
ao longo do dia 1, assistimos a uma intervenção deliberadamente violenta da
polícia espanhola nas assembleias de voto de toda a Catalunha, carregando sobre
milhares de pessoas que pretendiam votar ou que exerciam as suas funções de
escrutinadores, provocando centenas de feridos, destruindo equipamentos
públicos para apreender urnas e boletins de voto, detendo cidadãos. Ao
contrário do que diz o Governo espanhol, nenhuma "democracia
consolidada" se comporta desta forma perante, não dezenas ou centenas, mas
milhões de cidadãos catalães que não usaram da violência.
Optando pela via da repressão e da
intimidação, suspendendo de facto a autonomia da Catalunha que custou séculos a
conquistar, o Governo espanhol assume a atitude que, no passado, abriu caminho
para o pior da história de Espanha. Ignorando o seu "dever de promover a
realização do direito dos povos a disporem deles mesmos e respeitar esse
direito, em conformidade com as disposições da Carta das Nações Unidas", e
ofendendo um sem número de direitos prescritos na Carta Europeia dos Direitos
Fundamentais, o Governo espanhol coloca-se fora do campo democrático e perde
qualquer legitimidade em solicitar a solidariedade dos países e dos povos
democráticos. A História demonstra amplamente que, para negar o direito dos
povos e direitos cívicos tão básicos, é inútil esgrimir a legalidade, porque
são ilegítimas as formas de legalidade que ofendam direitos universais.
Associamo-nos, assim, aos apelos
internacionais para que se consiga uma solução política negociada entre as
autoridades que representam o Estado espanhol e a Comunidade Autónoma da
Catalunha. Mais até do que o legítimo direito à autodeterminação dos catalães,
o que está hoje em causa na Catalunha é a democracia e a liberdade. Dos
catalães e dos espanhóis, e de todos nós.
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