João
Camargo já nos habituou à qualidade dos seus artigos de opinião sobre
alterações climáticas. O texto que hoje assina no Público não foge a essa regra
e tem como tema de fundo o relatório da Comissão
Técnica Independente sobre os catastróficos incêndios de Outubro de
2017. Nele, este reputado investigador em alterações climáticas desmistifica a
campanha levada a cabo pelos defensores das espécies florestais que dão
dinheiro imediato – leia-se eucaliptos, em especial – chamando a atenção para o
facto real de que o eucalipto foi a espécie que mais ardeu por área em 2016,
2015, 2014, 2011 e 2006.
Mas, o melhor, é mesmo ler-se o artigo de Camargo que
transcrevemos do Público de hoje.
A
divulgação do segundo relatório da Comissão Técnica Independente (CTI), acerca
dos incêndios de Outubro de 2017, trouxe-nos muita informação relevante. No
entanto, um dos pontos mais destacados, de que a área ardida de pinheiro-bravo
foi maior que a de eucalipto, foi levantado como bandeira pelos defensores da
ideia de que “todas as espécies ardem igual”. Mas o que é que a quantidade de
área ardida por espécie num ano nos diz exactamente?
Diz-nos
pouco. O relatório da CTI estima que, da área florestal ardida em 2017, 49,6%
tenha sido pinheiro-bravo, 38,5% eucalipto, 7,4% carvalhos, castanheiros e
folhosas, 3,5% pinheiro-manso e 1% sobreiros e azinheiras. Faz questão de
destacar que 90% da área florestal ardida são pinheiros-bravos e eucaliptos, agrupando-os
aos dois, naturalmente, como espécies mais inflamáveis do que as restantes.
Esta ênfase dada à área de eucalipto ardido ter sido menor do que a de
pinheiro-bravo é nova, já que o eucalipto foi a espécie que mais ardeu por área
em 2016, 2015, 2014, 2011 e 2006, andando emparelhada em área ardida com o
pinheiro-bravo há cerca de uma década e meia.
Não
havendo no relatório uma avaliação da evolução da área ardida por espécie, o
que é normal considerando que o relatório é sobre 2017, é difícil compreender
que se tente tirar uma conclusão e que essa conclusão seja que “todas as
espécies ardem igual”, até porque o relatório diz o contrário disto,
referindo-se inúmeras vezes ao pinheiro-bravo e ao eucalipto como as “formações
florestais que mais ardem”, que “tanto do ponto de vista absoluto como
relativo, são o pinheiro-bravo e o eucalipto as espécies que mais arderam em
2017” e ainda que “a sua mistura [pinheiro-bravo e eucalipto] em povoamentos
não parece diminuir, mas sim aumentar, a probabilidade de arder”.
Um
dado muito relevante no relatório é o facto de se estimar que 42% da área que
ardeu em 2017 não ardia desde 1975. Esta área, principalmente os pinhais
litorais como o Pinhal de Leiria, são a enorme surpresa que Outubro de 2017
trouxe e que, naturalmente, aumentaram a percentagem de pinheiro-bravo ardido.
2017
foi de facto um ano cataclísmico, em particular os dias 15 e 16 de Outubro,
construindo-se a tempestade perfeita: os ventos do furacão Ofélia
conjugados com temperaturas altas recorde e humidades relativas baixas sob um
território profundamente fragilizado por abandono, monoculturas e seca
prolongada, deram origem a um inferno quase sem precedente à escala mundial.
Isso fica claro no relatório, em particular na avaliação dos mega-incêndios (aqueles
com área ardida superior a dez mil hectares).
Historicamente,
houve 26 mega-incêndios em Portugal. Onze desses 26 incêndios ocorreram em 2017
e oito desses foram nos dias 15 e 16 de Outubro. Os dois maiores incêndios de
sempre em Portugal ocorreram nestes dois dias, na Lousã e em Arganil, com áreas
ardidas de, respectivamente, 65 mil hectares e 38 mil hectares. A estes oito
mega-incêndios acrescem mais três grandes incêndios, com área ardida superior a
cinco mil hectares nestes dias. Segundo o relatório, foi a primeira vez que se
registou na Europa a ocorrência de mega-incêndios no Outono. Nestes dois dias
ocorreu, fruto da conjugação do furacão Ofélia
e das condições climatéricas no território continental, um fenómeno
piro-convectivo, o maior de sempre na Europa e o maior do mundo em 2017, tendo
ardido uma média de dez mil hectares por hora entre as 16h da tarde de 15
Outubro e as 5h da manhã de 16 de Outubro.
Nestas
condições, como o relatório aponta, a área ardida poderia até ter sido
superior, mas o gigantismo dos incêndios competiu entre si. E aqui,
dificilmente seria possível haver uma enorme selecção entre espécies
florestais, tal foi a velocidade e intensidade do inferno das chamas de 15 e 16
Outubro de 2017. Ainda assim, no centro do segundo maior incêndio de sempre em
Portugal, o de Arganil, houve uma pequena fatia de mata pública que persistiu.
A histórica Mata da Margaraça, composta principalmente por carvalho alvarinho,
castanheiros, aveleiras, ulmeiros, cerejeiras, nogueiras, medronheiros,
loureiros e azeireiro, considerada pelo Instituto de Conservação da Natureza
como uma “relíquia” de florestas do passado, viu menos de 20% da sua área
ardida, apesar de estar cercada por área ardida em todos os lados. Sem
bombeiros ou apoio relevante, a sua estrutura de espécies e de ecossistema
conseguiu reduzir a intensidade do fogo dos extremos para o centro. Foi a
composição de espécies desta floresta que combateu o incêndios e o seu núcleo,
mais maduro, ficou intacto, como destaca o relatório da comissão.
O
bailinho dos defensores do eucalipto sob estes resultados não revela que em
2017 arderam 123 mil hectares de pinheiro-bravo e 97 mil hectares de eucalipto
e que esses dois números são os maiores de sempre para as duas espécies. Também
não revela que, dessa área, os pinheiros deverão ter morrido quase todos,
enquanto nos eucaliptos o nível de mortalidade deverá estar perto de apenas 5%,
bastando umas semanas para vê-los emergir de novo. Também não revela que a área
de matos ardida foi de 42%, a mais baixa desde 2005. Ignora que houve espécies
que quase não arderam, e que o território nacional não está condenado a ter de
escolher apenas entre pinheiro-bravo e eucalipto. Ignora o próprio relatório.
Existe obviamente uma preferência por
espécies nos incêndios, e que é perceptível até num ano infernal como 2017. Só
a discriminação acirrada contra as espécies florestais que não dão dinheiro
imediato justifica que se tenha feito este triste bailinho, regozijando-se pelo
facto de o pinheiro-bravo, espécie em profundo declínio no nosso território,
ter ardido mais do que o eucalipto, a espécie mais plantada do nosso país. É
que essa é uma informação que, sozinha, diz pouco mais do que nada.
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