A crónica seguinte tem um título elucidativo para o qual chamamos a atenção porque transforma o texto num relato de uma situação real. No aspecto literário dá gosto usufrui-lo ainda que a qualidade não seja uma excepção para o seu autor. Tanto quanto tem dado para perceber, trata-se de uma pessoa próxima do PS. E é aqui que bate a questão, já que este senhor defendeu muitas vezes o governo Sócrates que foi quem criou as condições para aplicação das actuais políticas de direita. É uma pena que o PS, só fora do poder consiga transmitir alguns laivos de esquerda, especialmente da parte de militantes isolados. O que se está agora a passar na Assembleia da República é um exemplo desta faceta.
A situação que o texto refere deixa-nos “pregados ao chão” como alguém já comentou a meu lado. Trata-se de mais um caso de alarme social que, como tantos e tantos outros, não devia deixar indiferentes os nossos (in)governantes. Mas deixa porque a cegueira ideológica assim determina. A austeridade gera austeridade, como tanta gente vem chamando a atenção e, quando a questão do défice estiver resolvida já não haverá portugueses para usufruírem dos amanhãs que cantam. Entretanto, uns bem identificados tubarões, numa evidente demonstração do que é a arrogância do capital sem regras nem freio, nada para outras paragens onde vai deixar o dinheiro dos seus impostos, numa peculiar demonstração de patriotismo… Coitados dos accionistas poderiam lá perder o ensejo de se escaparem a mais uns impostos.
Mas vamos ao texto.
“A minha casa há-de ser uma pedra fria”
(Esta crónica não é literatura)
"Vem, mas devagar. Deixa que os meus olhos se habituem à luz, que as mãos sejam o porto de todos os abrigos para saudarem as manhãs que se abrem às trevas nestes dias que chegam sem remetente. Vem, mas não digas coisas que todos dizem, inventa com alegria quando não tiveres a certeza que a força das correntes te leva às praças, onde as especiarias têm os sabores das vozes que apregoam a esperança. Nas ruas e calçadas a luz do sol escorrega, desliza impunemente para a noite e nas soleiras das portas e alpendres de grandes edifícios, quase sempre de bancos, abeiram-se com papelões, cobertores sujos e outros haveres, coisas não colectáveis, coisas úteis mas não elegíveis para quem não precisa. Nas arcadas escolhem o lugar cativo, habituado ao corpo e à insónia, ao frio e à discreta profanação da miséria alheia. Começam por sentar-se, como se fosse a primeira vez, olham em redor, à sua volta o mundo do olhar é o único luxo, estar vivo é apenas um passaporte para o dia seguinte, sem garantia de coisa nenhuma. E o tempo demora tanto a passar quando a pressa não é a urgência dos outros! Naquele dia eu estava lá. Eram horas depois do sol, os candeeiros despertavam para a noite, chuviscava e os autocarros iam apinhados com gente cansada, de rosto fechado, triste por dentro mas sem alarido por fora. Era véspera de Natal, recordo que uma criança desenhava no vidro embaciado do autocarro uma casa e uma flor. Talvez na infância aquele sem-abrigo que estava ao meu lado, os seus dedos pequeninos e frágeis tivessem desenhado, também, casas e flores como aquela criança. Talvez tivesse tido os sonhos do mundo, se tivesse apaixonado, tivesse uma história única ou igual a tantas, de outros como nós. Mas agora estava ali, barba grisalha, amarelecida pelo fumo dos cigarros, dentes podres, cabelo sujo, unhas pretas, mãos gretadas e um corpo emprestado a uma alma que resiste. Ali ao meu lado, silencioso e admirador, à espera que a cidade adormecesse para chamar o seu sono. Olhava tudo ao seu redor, mas ninguém parecia reparar naquele homem velho e cansado, de olhos pequenos, estranhamente ignorado. Há muito que eu sabia o seu nome, o tempo mudou-lhe a vida e o aspecto. Agora ninguém o conhece. Ele não quer ser reconhecido, as barbas escondem-lhe a fisionomia, ocultam a sua verdadeira identidade, prefere assim. A sua dignidade e orgulho não lhe permitem “desmascarar-se”. Tomei coragem, aproximei-me, chamei-o pelo nome. Ele levantou-se bruscamente, com se eu tivesse desocultado uma verdade proibida, como se eu tivesse blasfemado perante um deus. Olhou-me secamente, de rosto duro, que a vida lhe emprestou, e com voz rouca e rude perguntou-me: “Quem é?” Olhei-o nos olhos, estendi-lhe a mão, aquela voz era-me familiar, parecia dentro de mim desde menino, tinha-me ensinado coisas para a vida. Era ele! As barbas não o denunciavam, mas a voz deixava ver através do tempo o seu retrato. Estendeu-me a mão, apertei-a demoradamente, como se fosse um abraço e, depois, lentamente deixou que a voz amolecesse e disse-me: “Foste meu aluno”. Ficámos de lágrimas nos olhos! Sentámo-nos sobre o degrau de pedra, que lhe servia de cama, e assim permanecemos até a emoção ir embora. A noite caiu cerrada, o nevoeiro chegou como um véu para encobrir a vergonha e o orgulho daquele que foi o meu professor de filosofia. Nos caminhos de Platão e de Aristóteles, na diáspora do pensamento, entre o sonho e a curva dos dias, houve ainda tempo para falarmos de esperança. Quando tudo parece certo o que surpreende é a vulnerabilidade da existência e a precariedade do sucesso. Aquele meu querido professor sabe melhor do que ninguém a distância entre o céu e o inferno. Antes de despedir-nos ainda rematou com esta frase: “A minha casa há-de ser uma pedra fria.” (António Vilhena, escritor, Diário de Coimbra)
sexta-feira, 6 de janeiro de 2012
MAIS UM RETRATO
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