sexta-feira, 8 de junho de 2012

A DEMOCRACIA EM PERIGO


Não tardará muito, aparecerá gente a dizer-nos que a democracia é mesmo o pior dos regimes porque é impossível governar e, ao mesmo tempo, respeitar a vontade dos povos. Os seus defensores passarão à clandestinidade, considerados perigosos extremistas, vigiados por um qualquer big brother, não tenham eles a veleidade de fazer lembrar às populações as características de um regime que houve em tempos e que se chamava democracia.
Os exemplos de afirmações que nos encaminham para um regime não democrático começam a acumular-se. A primeira pessoa que sugeriu a suspensão da democracia por seis meses foi exactamente Manuela Ferreira Leite, antiga líder do PSD. Nessa altura, 2008, as afirmações desta senhora geraram grande indignação mas, entretanto, várias outras se fizeram no mesmo sentido. De facto, devemos concluir que o sistema capitalista na sua forma mais agressiva, agora dominada pelo capital financeiro, quer, à viva força, impor a capitulação dos povos perante os seus ditames.

O texto seguinte é de Manuel Loff e foi capturado no “Público” de ontem. É excelente na forma como aborda os ataques dissimulados que começam a ser desferidos contra a democracia e a que poucos vão dando a devida importância.


Fim de regime (II)

O reitor da Universidade do Porto propôs, há dias atrás, que os portugueses se calassem durante seis meses porque "o país está a atravessar uma fase em que todos se deviam calar"". Segundo o Jornal de Notícias (23.5.2012), Marques dos Santos, que desde há 22 anos ocupa cargos de gestão universitária, respondia a questões sobre as dificuldades sentidas pelos estudantes em prosseguir estudos, e terá dito aos jornalistas "[achar] que, se estivéssemos seis meses todos calados, não criássemos mais problemas do que os que já existem e deixássemos as coisas correr, daqui a seis meses, trabalhando, veríamos que as coisas até evoluíram melhor do que o que pensámos".

Já Manuela Ferreira Leite, lembrar-se-ão bem, sugeria em 2008 que se suspendesse a democracia por seis meses (deve haver aqui uma fórmula mágica que me escapa...). A antiga líder do PSD dizia naquela altura "não [acreditar] em reformas quando se está em democracia..." (PÚBLICO, 18.11.2008) Por outras palavras, é difícil fazer com que vítimas das reformas (como gosta esta gente de desvirtuar a palavra!) as engulam em silêncio! - e o silêncio é um ingrediente essencial do processo. (E das ditaduras, claro.)

Ferreira Machado, outro economista como Ferreira Leite, também ele gestor universitário (diretor da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa, um dos epicentros do ultraliberalismo nacional), entende que "as democracias favorecem amplamente o statu quo (...) porque os perdedores das reformas (...) são grupos bem precisos, capazes de fazer pressão sobre os dirigentes políticos". Para ajudar a perceber esta afirmação, ouçamos o seu colega José Neves Adelino, que dirige o famoso MBA da Nova: "Até agora, "os programas políticos eram concebidos para as pessoas serem eleitas", diz ele, pegando no exemplo do sistema público de saúde" (Le Monde Diplomatique - edição portuguesa, Abril 2012). Deduz-se que, daqui em diante, os programas políticos serão feitos em nome de outros valores que não os que são intrínsecos às democracias: a sua ratificação popular, o deverem ser produto do debate entre cidadãos iguais e livres.

É revelador como estas luminárias da economia e da gestão - que, segundo o Financial Times (19.9.2011), são consultados pela delegação da troika que nos tem feito visitas tão simpáticas -, ou como o reitor da UP, encaram o processo democrático: um obstáculo ao trabalho, à decisão tomada tendo por base "um ponto de vista informado, mas independente", como diz Ferreira Machado, para quem as propostas que emanam da Economia da Nova "não são emocionalmente comprometidas", ao contrário, imagina-se, do que passa pelas pobres cabeças dos cidadãos comuns. O mesmo pensava, aliás, Salazar, que dizia "confinar-se no isolamento e no silêncio" para "afastar todo o risco de emoção" na tomada de decisão (Férias com Salazar). Para o reitor da UP, pelo seu lado, vivemos ""uma altura em que a psicologia é fundamental" e as "coisas depressivas" não ajudam a construir o país."

Quanta razão... E o primeiro fator depressivo é precisamente este ambiente de fim da democracia que, como aqui escrevi há duas semanas atrás, desde há anos se vai adensando! Pior: é o despudor com que figuras destacadas da universidade - descrita desde há séculos como espaço prioritário da investigação e do debate feitos em plena liberdade - assumem um discurso tecno-elitista sobre a gestão da mudança social, uma espécie de despotismo esclarecido do séc. XXI, eivado de um tão evidente desprezo pela democracia que os tem levado a ser os arautos de um autoritarismo contra o qual o nosso regime democrático foi fundado.

Numa sociedade em que o medo impera no mundo do trabalho, onde patrões privados e tantos dirigentes da Administração Pública, a coberto da chantagem da crise e do desemprego, se comportam como se todas as regras não dependessem de mais ninguém senão deles próprios, levantam-se estas vozes que exigem mais silêncio ainda. Pior: fazem-no em nome de uma legitimidade que julgam estar acima da (ou em contraponto com a) expressão da vontade popular: a da ciência, da capacidade técnica, de uma pseudociência produzida por quem tem interesses (económicos, simbólicos, de poder) muito evidentes na formulação das suas próprias conclusões.

É daqui que têm surgido os governos ditos técnicos, os Monti e os Papademos desta Europa deprimida, que nunca foram ratificados sequer em eleição alguma mas que são a escolha das Merkel e das troikas deste mundo, cujo poder é exercido em nome de uma competência que os leva diretamente dos gabinetes dos grandes potentados financeiros (de onde vieram uma infinidade de ministros e de insinuantes conselheiros económicos dos governos da troika) para os gabinetes do poder político. A lógica é de uma modernidade francamente patética, a tal ponto não passa de uma reedição dos governos dos monarcas absolutos do séc. XVIII. Mas sonha esta gente em ser quem, o marquês de Pombal?... Se não os pararmos, o terramoto está, efetivamente, assegurado.

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