domingo, 20 de janeiro de 2013

A CULPABILIZAÇÃO NÃO COLA


O discurso da culpabilização – “vivemos acima das nossas possibilidades” – tem servido ao governo e ao exército dos seus seguidores, que enxameiam a comunicação social, para justificar todas as malfeitorias que se destinem ao processo acelerado de empobrecimento em curso. O nivelamento por baixo é o que está a dar através da propaganda tendenciosa que leva a colocar grupos da população contra outros (sector público contra sector privado, jovens contra pensionistas e reformados, aqueles que não podem fazer greve contra grevistas, etc.), numa manobra de dividir para reinar. Acontece que o pecado do consumismo pode ter alguma contextualização na “nossa matriz judaico-cristã” mas não tem nenhuma justificação científica como muito bem refere o seguinte texto do insuspeito Nicolau Santos no Expresso Economia de ontem.



Fartos do discurso da culpabilização

Desde que chegou ao poder, o primeiro-ministro adotou um discurso culpabilizador para com a população portuguesa. A culpa de termos chegado até aqui é das famílias que se endividaram demais, das empresas que se endividaram demais e do Estado que se endividou demais. Agora, para resolvermos o problema, temos de empobrecer. Será a forma de expiar na terra os nossos pecados do consumismo, da gula, da avidez, da luxúria e, claro, da preguiça. Por causa disto, seremos punidos através de sucessivos e brutais aumentos de impostos, quebras assinaláveis dos rendimentos das famílias e subida exponencial de falências e desemprego.

A nossa matriz judaico-cristã leva-nos a admitir que talvez o primeiro-ministro tenha razão. Provavelmente não precisávamos de comprar tudo o que comprámos, de comer todas as iguarias que comemos, de beber os vinhos que bebemos, de adquirir roupa e sapatos um pouco melhores, de mudar de casa ou fazer obras na antiga, de tocar o carro velho por um novo, de ter um computador e um televisor, de tratar dos dentes, de fazer check-ups e análises, de ir de férias.

Acontece que esta conversa não tem nenhuma fundamentação científica. Visa levar-nos a aceitar de cabeça baixa e mansamente os sacrifícios que a troika e o Governo nos estão a impor.

Ora o que é preciso dizer, de uma vez por todas, é que todos os agentes económicos reagiram a estímulos. Os governos investiram em autoestradas, hospitais e mais betão porque havia grande disponibilidade de fundos comunitários para isso. As empresas fizeram investimentos com dinheiro emprestado porque, em primeiro lugar, do ponto de vista fiscal não existe nenhum incentivo para que reforcem os seus capitais próprios; e em segundo porque havia grande facilidade no acesso ao crédito, a taxas muito favoráveis. As famílias, por seu turno, compraram casa porque o mercado de arrendamento estava bloqueado há muitos anos e porque todo o sistema bancário apostou neste segmento, concedendo crédito a longo prazo a taxas muito baixas. E compraram também muitos bens de consumo ou viajaram a crédito porque os bancos insistiram em dar-lhes financiamento barato, cartões de crédito e todo o tipo de estímulos e facilidades para aceder a esses bens. Os agricultores, por seu turno, deixaram de produzir cereais, leite ou outros produtos porque a Política Agrícola Comum os orientou nesse sentido. E a nossa frota de pesca foi desmantelada porque Bruxelas deu chorudas indemnizações para que os empresários assim procedessem.

Claro que em várias áreas houve excessos e casos existirão em que os agentes económicos deveriam ter resistido às tentações que lhes colocavam à frente. Também é verdade que em vários casos, deveriam ter sido as autoridades a usar os meios à sua disposição para travar o caminho errado que estávamos a percorrer. Mas, em termos gerais, os agentes económicos reagiram a estímulos: estímulos das políticas europeias e dos fundos estruturais, estímulos do sistema financeiro, estímulos da publicidade da distribuição e das grandes superfícies, estímulo das agências de viagens, etc.

O discurso da culpabilização quer que aceitemos a brutalidade da austeridade com resignação e um sentimento de inevitabilidade. Mas o que precisamos é de um discurso que nos ajude a sair do pessimismo e do desânimo em que nos tentaram sequestrar, que nos mobilize para ultrapassar as dificuldades e que nos faça acreditar que podemos construir um país melhor, mais justo, inovador e atraente. Desconfio que nunca será o atual primeiro-ministro a fazê-lo.

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