O poder económico e o capital financeiro têm vindo, sucessivamente, a subverter a democracia, em favor de uma reduzida minoria, colocando em lugares de chefia gente que não hesita em pisar a lei, incluindo a própria constituição para atingir os seus fins. A chamada “refundação” do Estado insere-se nesta estratégia de deslocação para o sector privado de serviços públicos essenciais como os que se referem à saúde, educação, segurança social, fornecimento de água e de energia, etc., com prejuízo, a curto prazo de vastas camadas da população, em especial, a mais carenciada.
A estratégia é sempre a mesma: passar para interesses privados os sectores mais lucrativos e empresas públicas estratégicas, deixando para o Estado apenas o que dá prejuízo. Privatizar os lucros e socializar os prejuízos.
Este tema é a base de um interessante artigo de opinião que vem no Público de hoje e que transcrevemos a seguir.
“Refundação” do Estado e direitos fundamentais (*)
O debate sobre o Estado ganhou nestes dias, não pelas melhores razões, espaço na agenda política e mediática. O discurso sobre a "refundação" do Estado lançado pelo atual governo resume-se a uma alegada necessidade de reduzir a despesa com o Estado social. A opacidade do discurso não esconde, porém, a intenção de limitar drasticamente as funções económicas e sociais do Estado, transferindo-as para o sector privado - como o demonstra também a política de privatizações das empresas públicas estratégicas (EDP, TAP, RTP...) -, reforçando o peso do poder económico sobre o poder político democrático.
Consagradas pela Constituição de 1976, essas funções implicam o poder democrático na provisão de bens (água, energia, etc.) e serviços públicos essenciais e universais (saúde, educação, segurança social, etc.), e no desenvolvimento económico e social.
Os anos 1980, no quadro da adesão à CEE, deram azo a um processo gradual de privatização e liberalização da atividade económica, convertendo o Estado em predominantemente regulador e contratante com o sector privado (as parcerias público-privadas ilustram alguns dos efeitos menos abonatórios deste processo). Hoje, porém, existe uma ameaça de subversão da missão social e económica do Estado, pondo em causa a responsabilidade deste como garante do bem comum e dos direitos económicos, sociais e culturais (DESC) dos cidadãos. A intervenção do Estado para combater a crise financeira, socializando custos, e a pretensão de cortar, a fundo e sem critério, na despesa social fazem perigar direitos fundamentais inerentes aos valores da democracia e do Estado de direito. É urgente "levar os direitos a sério" (Dworkin). O princípio maioritário tem limites que, como exige o princípio da separação de poderes, são, entre nós, garantidos sobretudo pelo Tribunal Constitucional (TC). Falar de excesso de direitos ou de judicialização da política é apenas um modo de defender que o poder político não deve ter limites quando aja em favor do poder económico não democrático.
É jurisprudência assente nos planos internacional e interno que, sempre que estejam em causa medidas restritivas de direitos fundamentais dos cidadãos em nome do interesse público, deve ser respeitado o princípio da proporcionalidade: essas medidas devem ser sempre fundadas numa avaliação da sua necessidade e à luz de alternativas que podendo alcançar os mesmos fins se revelem menos gravosas para as pessoas. Acórdãos recentes do TC alemão (2010) explicitaram de forma precisa as exigências substantivas e procedimentais a cumprir nestas circunstâncias, entre outras: a garantia de níveis mínimos de proteção social compatíveis com a dignidade humana, no plano físico e no da participação social, cultural e política dos indivíduos, e a divulgação dos métodos de cálculo das prestações sociais ou cortes.
Na mesma linha, numa decisão modelar, o TC da Letónia (2009) declarou inconstitucional uma legislação (recomendada pelo FMI) que, a fim de conter o défice público, determinava reduções nas pensões. Argumentou o tribunal que o governo deveria ter ponderado alternativas menos restritivas e garantido períodos de transição ou compensações futuras pelos cortes, frisando ainda o imperativo de garantir níveis sociais mínimos para os pensionistas, independentemente dos recursos disponíveis.
A "refundação" tecnoburocrática do Estado promovida pelo governo não respeita minimamente estes princípios. É, de resto, paradoxal que o governo seja tão solícito para incorporar na Constituição limites ao défice e à dívida (no fundo, a constitucionalização da austeridade) e tão pouco diligente quando se trata de cumprir os deveres constitucionais que lhe cabem em matéria de direitos fundamentais dos cidadãos.
É crucial repor os direitos fundamentais na agenda política, revalorizando-os como imperativos éticos e pilares essenciais de um Estado de direito. Os DESC devem ser determinantes de qualquer decisão política, inclusive da (re)negociação de acordos de assistência financeira com troikas e de qualquer reforma séria do Estado.
(*) Maria Eduarda Gonçalves, António Carlos Santos, João Pato
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