“Há quem acredite que o primado da lei e do voto de quatro em quatro anos chega para garantir a democracia”. Quem pensa assim está completamente errado. Se a relação de confiança entre povo e governantes eleitos se quebra, a aplicação das leis deixa de ser possível e a governabilidade torna-se uma tarefa impossível. Por muita legitimidade formal que um governo obtenha através do voto, se a maioria da população sentir que está a ser enganada de forma escandalosa como tem vindo a acontecer em Portugal, de forma sistemática, desde que Passos Coelho e Portas tomaram posse, então, a ruptura entre governados e governantes é inevitável com a consequente inaplicabilidade das leis.
É este o tema base da coluna semanal que Daniel Oliveira assina este sábado no Expresso, um excelente texto que transcrevemos a seguir.
DO POVO, PELO POVO, PARA O POVO
Aurélia tinha 85 anos e vive na Corunha. Atrasou-se um mês a pagar a renda de casa e o tribunal decidiu o seu despejo. Em Espanha, decisões como estas são 520 por dia, com vários suicídios registados. Não estando em causa a obrigatoriedade de pagar as rendas, está a desproporcionalidade e a insensibilidade social destas medidas. Por causa delas, um grupo de cidadãos ciou a plataforma Stop Despejos. Plantam-se à porta da casa dos despejados, chamam a comunidade social, e, através da resistência e da exposição da injustiça, tentam obrigar as autoridades públicas a recuar. Repare-se: impedem a aplicação de uma lei aprovada por um parlamento eleito, determinada por tribunais legítimos e aplicada pelas forças de segurança de um Estado de direito. E, no entanto, é difícil dizer que fizeram mal em impedir que Aurélia fosse despejada.
Viver em democracia é viver em tensão. A tensão entre os representantes eleitos e os cidadãos que os elegem, entre as leis que aprovam e a aceitação social que permite que elas sejam aplicadas. Há quem acredite que a democracia pode existir sem representantes eleitos, tribunais independentes e separação de poderes. Conhecemos os resultados do desprezo pela democracia representativa: democracia nenhuma. Há quem acredite que o primado da lei e do voto de quatro em quatro anos chega para garantir a democracia. Só que a uma lei não chega a aprovação parlamentar. Sem aceitação social torna-se inaplicável. E a um governo não chega ser eleito. Tem de saber manter uma relação de confiança com quem o elegeu.
Pode dizer Miguel Relvas que os portugueses terão a oportunidade de se verem livres dele em 2015. Mas a verdade é que se um governo eleito perde o apoio popular deixa de conseguir governar. Se um ministro é desprezado por todos deixa de conseguir cumprir as suas funções mais básicas. Incluindo a de fazer um discurso numa universidade. Um ministro (ou um governo) que, perante o desespero das pessoas, já nem consegue falar aos cidadãos está condenado a fugir pela porta dos fundos. Pode agarrar-se à sua legitimidade formal para continuar a ocupar o lugar. Mas ela, no desempenho das suas obrigações quotidianas, não vale um caracol. Como o despejo de Aurélia, que, por mais legal que seja, surge como intolerável aos olhos de qualquer espanhol normal, a presença de Miguel Relvas no governo tornou-se insuportável para a esmagadora maioria dos portugueses.
O Estado Novo criou um mito sobre os portugueses: o de que somos brandos nos costumes. Um mito que não tem correspondência com a nossa história mas que era conveniente à ditadura. É verdade que os mitos sobre um povo também formam o seu carácter. E, quando comparados com espanhóis, revelamos quase sempre maior resignação e conformismo. É por isso que, apesar de tudo, ainda é com cantos e gritos que Passos ou Relvas se têm de confrontar. Acontece que os mitos também se desfazem. E ou os governantes percebem que não podem viver divorciados de um povo ou o ‘povo bom’ que um representante da troika elogiou muda de temperamento. Sem conteúdo democrático – um governo do povo, para o povo e pelo povo – a legitimidade formal vale muito pouco. Porque para uma lei ser lei, para um governo ser governo, não lhe basta a forma. É preciso que os cidadãos lhe reconheçam o conteúdo.
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