sábado, 21 de setembro de 2013

ESSES CÃES DE ATENAS



A fraca credibilidade do actual executivo, tanto a nível colectivo como individual, desce a zero numa altura em que se aproximam eleições e é necessário confundir os portugueses com esperanças vãs sobre o nosso futuro. Vale tudo e a mentira é comummente usada sem qualquer rebuço. Uma das que temos ouvido mais recentemente é que se aproximam tempos melhores e que, não senhor, não vamos precisar de mais nenhum resgate. Infelizmente, não é esta a realidade, como vozes de indiscutível honestidade vêm afirmando.
O roubo de salários e pensões que aí vem, incluindo a redução do salário mínimo, não auguram nada de bom, antes pelo contrário, a nossa desgraça irá acentuar-se ainda mais. O exemplo que vem da Grécia, cuja situação já deixou de abrir noticiários televisivos e de ser notícia de primeira página de jornais, deve estar bem presente na cabeça dos portugueses porque talvez configure o cenário mais próximo de nós. Por isso, não resistimos a transcrever o texto que Clara Ferreira Alves assina hoje na Revista do Expresso, redigido por quem observou a situação in loco.
Demetri Sofianopoulos, um realizador grego, teve a ideia de filmar a catástrofe grega através da autobiografia de um cão, Bruno. Bruno é um cão abandonado pelos donos, falidos, que como centenas de cães vagueia pela cidade de Atenas. Bruno vai aos restaurantes onde costumava ir com os donos, quase todos fechados, à procura do passado. Demetri segue-o, filmando o que ele vê e dando-lhe voz. Bruno não anda em matilha e tem dificuldade em arranjar um canto onde passar a noite, porque os cantos abrigados estão ocupados por sem-abrigo.
Estes cães, com coleira de cabedal puído e um pelo ferido por maus-tratos, são espelho de uma humanidade. Os cães de raça são a classe média reduzida a passar fome, recorrer a organizações humanitárias, dormir na rua, suplicar um emprego que não existe. Os cães rafeiros, são os pobres, a estender pernas escalavradas nas esquinas, nas soleiras das portas, e que desistiram de pedir esmola porque não há esmolas. Demetri Sofianopoulos vai filmando a violência. A violência íntima, a anestesia induzida pela miséria que se segue à raiva e à impotência, a violência que conduz ao suicídio e que tem na árvore do suicidado da Praça Sintagma, com as coroas de flores secas e os bonecos de peluche, os cartazes desfeitos pela chuva, o seu monumento. E a violência social, as manifestações, as batalhas campais, as cacetadas e bastonadas, o gás lacrimogéneo, os olhos ardidos, os carros incendiados, as cabeças ensanguentadas. Vai filmando o ruído. E o vazio, o silencio, as pedras desertas, as casas por acabar, os lugares encerrados. O silencio no olhar de Bruno arrepia.
A Al-Jazeera passou esta semana o documentário que o jornalista da Croácia Tomislav Zaja filmou sobre Demetri a filmar o documentário. Chama-se “Demetri e Bruno”. O filme de Zaja é cru, sem adjectivos. Mostra coisas que eu vi nas duas semanas que passei em Atenas, em 2011. E que escrevi. E que continuam lá. Mostra a condenação de um país à morte e a condenação das pessoas à morte social, cívica, intelectual, moral. À indignidade. Um país que é a matriz da cultura europeia.
Sobre a crise grega já muito se escreveu e muitos disparates forma ditos. Há quem ache que as pessoas têm de ser punidas pela má cabeça e corrupção politica e moral dos seus dirigentes. Há quem ache que os desgraçados gregos têm o que merecem. Recorde-se que, durante anos, as contas gregas foram deliberadamente falsificadas para esconder o défice, com a colaboração das autoridades europeias (que olharam para o lado), de entidades financeiras como a Goldman Sachs (que cobrou milhões), do FMI, da Alemanha (que lucrou e promoveu negócios, pagando luvas, através de grandes empresas como a Siemens condenada em tribunal), dos bancos, dos milionários gregos e dos partidos e clientelas, sobretudo o conservador Nova Democracia, no poder. Afinal a direita é tão perdulária como a esquerda. Nova Democracia é o partido do governo, o PASOK quase desapareceu, e o Syrisa continua a fazer sombra, sendo provável que ganhasse eleições agora. A Grécia, apesar de as receitas do turismo terem aumentado e das piedades do ministro Stournaras, das Finanças, não está melhor nem está a caminho da solvência ou da recuperação. Está mais pacificada porque está exausta. Se existe um país onde se demonstra que a austeridade é incompatível com o crescimento é este. O resto são balelas. A Grécia deveria sair do euro. Ou a Europa deveria perdoar o resto da dívida e os juros e injetar dinheiro na economia, o que Tsipras voltou a repetir, fazendo eco das palavras de economistas sérios como Yanis Varoufakis. Tudo o que se tem feito com a Grécia é um criminoso adiamento. Os jovens fogem, os velhos medem o caixão.
A originalidade grega é a de ter reduzido à indigência e à destituição uma categoria social que, em condições normais, estaria protegida pelo Estado social e pela economia. A classe média. Professores, empresários, jornalistas, académicos, escritores, músicos, médicos, enfermeiros, bancários, artistas, chefes, agricultores, cientistas, funcionários públicos e privados, reformados, etc., viram-se privados do mundo que conheciam. Os que não podem emigrar e os que não conseguem morrer estão num limbo donde ninguém, repito, ninguém os quer retirar. Uma rede underground de médicos compassivos trata doentes terminais que foram chutados para fora do sistema. Esta gente somos nós. Não são os “pobres” do costume. Uma diretora de uma ópera de Atenas come uma vez por dia. Não se consegue imaginar, a não ser quando se veem as mãos brancas com veias salientes a tocarem um pedaço fúnebre de Chopin num piano morto, o que isto seja. Um dia poderei dizer que assisti, no meu tempo de vida, a uma execução. Um país a ser assassinado. 

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