A fraca credibilidade do actual
executivo, tanto a nível colectivo como individual, desce a zero numa altura em
que se aproximam eleições e é necessário confundir os portugueses com
esperanças vãs sobre o nosso futuro. Vale tudo e a mentira é comummente usada
sem qualquer rebuço. Uma das que temos ouvido mais recentemente é que se
aproximam tempos melhores e que, não senhor, não vamos precisar de mais nenhum
resgate. Infelizmente, não é esta a realidade, como vozes de indiscutível honestidade
vêm afirmando.
O roubo de salários e pensões que aí vem,
incluindo a redução do salário mínimo, não auguram nada de bom, antes pelo
contrário, a nossa desgraça irá acentuar-se ainda mais. O exemplo que vem da Grécia,
cuja situação já deixou de abrir noticiários televisivos e de ser notícia de
primeira página de jornais, deve estar bem presente na cabeça dos portugueses
porque talvez configure o cenário mais próximo de nós. Por isso, não resistimos
a transcrever o texto que Clara Ferreira
Alves assina hoje na Revista do Expresso, redigido por quem observou a
situação in loco.
Demetri Sofianopoulos, um
realizador grego, teve a ideia de filmar a catástrofe grega através da
autobiografia de um cão, Bruno. Bruno é um cão abandonado pelos donos, falidos,
que como centenas de cães vagueia pela cidade de Atenas. Bruno vai aos
restaurantes onde costumava ir com os donos, quase todos fechados, à procura do
passado. Demetri segue-o, filmando o que ele vê e dando-lhe voz. Bruno não anda
em matilha e tem dificuldade em arranjar um canto onde passar a noite, porque
os cantos abrigados estão ocupados por sem-abrigo.
Estes cães, com coleira de
cabedal puído e um pelo ferido por maus-tratos, são espelho de uma humanidade. Os
cães de raça são a classe média reduzida a passar fome, recorrer a organizações
humanitárias, dormir na rua, suplicar um emprego que não existe. Os cães rafeiros,
são os pobres, a estender pernas escalavradas nas esquinas, nas soleiras das
portas, e que desistiram de pedir esmola porque não há esmolas. Demetri
Sofianopoulos vai filmando a violência. A violência íntima, a anestesia
induzida pela miséria que se segue à raiva e à impotência, a violência que
conduz ao suicídio e que tem na árvore do suicidado da Praça Sintagma, com as
coroas de flores secas e os bonecos de peluche, os cartazes desfeitos pela
chuva, o seu monumento. E a violência social, as manifestações, as batalhas
campais, as cacetadas e bastonadas, o gás lacrimogéneo, os olhos ardidos, os
carros incendiados, as cabeças ensanguentadas. Vai filmando o ruído. E o vazio,
o silencio, as pedras desertas, as casas por acabar, os lugares encerrados. O silencio
no olhar de Bruno arrepia.
A Al-Jazeera passou esta
semana o documentário que o jornalista da Croácia Tomislav Zaja filmou sobre Demetri
a filmar o documentário. Chama-se “Demetri e Bruno”. O filme de Zaja é cru, sem
adjectivos. Mostra coisas que eu vi nas duas semanas que passei em Atenas, em
2011. E que escrevi. E que continuam lá. Mostra a condenação de um país à morte
e a condenação das pessoas à morte social, cívica, intelectual, moral. À indignidade.
Um país que é a matriz da cultura europeia.
Sobre a crise grega já muito
se escreveu e muitos disparates forma ditos. Há quem ache que as pessoas têm de
ser punidas pela má cabeça e corrupção politica e moral dos seus dirigentes. Há
quem ache que os desgraçados gregos têm o que merecem. Recorde-se que, durante
anos, as contas gregas foram deliberadamente falsificadas para esconder o
défice, com a colaboração das autoridades europeias (que olharam para o lado),
de entidades financeiras como a Goldman Sachs (que cobrou milhões), do FMI, da Alemanha
(que lucrou e promoveu negócios, pagando luvas, através de grandes empresas
como a Siemens condenada em tribunal), dos bancos, dos milionários gregos e dos
partidos e clientelas, sobretudo o conservador Nova Democracia, no poder. Afinal
a direita é tão perdulária como a esquerda. Nova Democracia é o partido do governo,
o PASOK quase desapareceu, e o Syrisa continua a fazer sombra, sendo provável
que ganhasse eleições agora. A Grécia, apesar de as receitas do turismo terem
aumentado e das piedades do ministro Stournaras, das Finanças, não está melhor
nem está a caminho da solvência ou da recuperação. Está mais pacificada porque
está exausta. Se existe um país onde se demonstra que a austeridade é
incompatível com o crescimento é este. O resto são balelas. A Grécia deveria
sair do euro. Ou a Europa deveria perdoar o resto da dívida e os juros e injetar
dinheiro na economia, o que Tsipras voltou a repetir, fazendo eco das palavras
de economistas sérios como Yanis Varoufakis. Tudo o que se tem feito com a
Grécia é um criminoso adiamento. Os jovens fogem, os velhos medem o caixão.
A originalidade grega é a de
ter reduzido à indigência e à destituição uma categoria social que, em condições
normais, estaria protegida pelo Estado social e pela economia. A classe média. Professores,
empresários, jornalistas, académicos, escritores, músicos, médicos,
enfermeiros, bancários, artistas, chefes, agricultores, cientistas,
funcionários públicos e privados, reformados, etc., viram-se privados do mundo
que conheciam. Os que não podem emigrar e os que não conseguem morrer estão num
limbo donde ninguém, repito, ninguém os quer retirar. Uma rede underground de
médicos compassivos trata doentes terminais que foram chutados para fora do
sistema. Esta gente somos nós. Não são os “pobres” do costume. Uma diretora de uma
ópera de Atenas come uma vez por dia. Não se consegue imaginar, a não ser
quando se veem as mãos brancas com veias salientes a tocarem um pedaço fúnebre
de Chopin num piano morto, o que isto seja. Um dia poderei dizer que assisti,
no meu tempo de vida, a uma execução. Um país a ser assassinado.
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