Quando a situação portuguesa se encontra
cada vez mais complexa, de tal maneira que quase não dá para olharmos para o
lado, eis que agora se desenrola a nível internacional mais um conflito bélico
que ameaça envolver grandes potências. Trata-se da guerra civil na Síria onde
acabam de ser utilizadas armas químicas. Por qual das partes? Pelos vistos, por
ambas mas, para os americanos, apenas uma é que conta. Curiosamente nesta
guerra não há “terroristas” mas apenas “rebeldes” já que estes se encontram do
lado certo da história…
O assassinato de centenas de crianças por
gás sarin que os americanos atribuíram de imediato ao regime de Assad foi o
pretexto que a “falcoaria” yankee esperava para intervir na Síria, abrindo
assim alas para o almejado Irão. Estamos, pois, perante mais uma colossal
hipocrisia ocidental, e americana em particular, que é preciso desmascarar como
o faz muito bem Manuel Loff no seguinte texto que assina hoje no Público.
A proposta russa de colocar sob controlo da ONU as
armas químicas da Síria (as controladas pelo Governo de Assad, claro, porque
com aquelas que estão nas mãos dos rebeldes não se sabe o que acontecerá),
rapidamente aceite pelo Governo sírio, exasperou os rebeldes islamistas e, na
mesma medida, embaraçou os Governos de Washington e de Paris. Aqueles que
tinham apostado - e que apostam ainda - pela solução militar percebem que assim
se lhes pode evaporar o que resta de um mínimo de apoio para a realizar. Quando
Obama decidia ontem adiar a votação parlamentar para dar luz verde ao ataque
americano, e consequentemente desengatilhar momentaneamente as armas apontadas
à Síria, o porta-voz da Casa Branca, Jay Carney, apressava-se a dizer que a
proposta russa surgia agora apenas "por causa da ameaça dos EUA em
empreender uma ação militar"... Depois do recuo britânico (forçado pelo
Parlamento) e da evidente auto-inibição alemã por motivos eleitorais, de ver a
grande maioria da comunidade internacional (Portugal incluído, ó surpresa!)
defender uma solução no âmbito da ONU, e de a opinião pública se opor à guerra,
a falcoaria norte-americana procura virar o bico ao prego, atribuindo-se a si
própria uma vitória naquela que poderá revelar-se, se a proposta russa evitar a
enésima guerra americana, uma das (raras) grandes derrotas diplomáticas
americanas desde o final da Guerra Fria e do início de uma hegemonia imperial
sem precedentes na História.
Agora
que o Governo sírio se apresta a assinar a Convenção contra a Proliferação de
Armas Químicas, era bom lembrar que Israel, o mais importante aliado dos EUA na
região, nunca a assinou. Não admira, porque as usa nos seus ataques contra
Gaza. Nem assinou esta, nem a contra a proliferação de armas nucleares: Israel
possui um arsenal nuclear incomparavelmente mais letal que o químico da Síria,
e os EUA bloqueiam, evidentemente, qualquer resolução da ONU que pretenda
obrigar os israelitas a se sujeitarem, como agora os sírios, à inspeção
internacional. A duplicidade do Governo americano na região, o mais
esquizofrénico dos atores internacionais dos últimos 70 anos (doses cavalares
de adocicado moralismo liberal para fazer engolir o seu envolvimento perpétuo em
guerras), não fica por aqui. Lembram-se do ataque químico de Saddam Hussein
contra populações curdas, em 1988? Pois ele não motivou então qualquer sanção
dos EUA porque Saddam era, na altura, apoiado por Washington na sua guerra
contra o Irão. Já agora, os americanos podiam começar por si próprios: em 1997
comprometeram-se a destruir em dez anos 31 mil toneladas de gases letais
(sarin, VX mostarda, ...) que fabricaram para fins bélicos; os inspetores
internacionais ainda estão à espera... Falamos, atenção, do estado que, depois
do Holocausto, mais gente matou e deformou com armas químicas, designadamente
na guerra do Vietname. No Iraque, usaram urânio enfraquecido e, como sublinha
John Pilger, prestigiado repórter das guerras americanas, "ninguém lhes
desenhou uma "linha vermelha"" (Guardian, 10.9.2013)
A
história dos EUA é, pelo menos desde 1941, a história da guerra no mundo. Cinco
anos depois de Hiroxima, os EUA já estavam em guerra na Coreia (1950-53) e
começavam 25 anos de guerra no Vietname, primeiro auxiliando os franceses
(1950-54), depois atolando-se no seu pior pesadelo do século (1954-75). Sem
sair do Vietname, envolveram-se militarmente em África, no Congo (1960-65) -
onde se suspeita que possam ter estado por detrás da morte de Dag Hammarskjöld,
secretário-geral da ONU -, nas Américas, atacando Cuba (1961), invadindo a Rep.
Dominicana (1965-66) e Granada (1983), ao mesmo tempo que armavam a guerrilha
nicaraguense anti-sandinista (1979-90), financiando-a, curiosamente, com os
lucros da venda de armas ilegal ao seu arqui-inimigo Irão, e, na Ásia, os
islamistas que se opunham ao governo afegão aliado dos soviéticos (1979-89),
entre os quais se destacava um saudita rico, Bin Laden de seu nome. Desde o fim
da Guerra Fria que os americanos não param, quando se suporia que o nível de
conflito tendesse a descer: invasão do Panamá (1989-90), bombardeamentos da
Bósnia-Herzegovina (1995) e do Kosovo e Sérvia (1999), de volta ao Afeganistão
(desde 2001), de onde tão cedo não sairão, a que se somam as suas guerras do
petróleo, no Iraque (1991 e 2003-12), na Líbia (2011). Agora, a Síria. Falta o
Líbano e o Irão...
Doze anos depois do ataque às
Torres Gémeas, passaram mais de 70 anos de guerras longínquas que impregnaram a
história dos americanos. Uma sociedade da qual, apesar de toda a sua
diversidade, nunca desapareceu o culto do combatente (desprezado, claro, quando
cessa de o ser), sujeita à "militarização da sua cultura total", como
a define o historiador Norman Pollack. Nela, os anos revelam que Obama, a quem,
depois de Kissinger deram o mais equívoco Nobel da Paz, herdou, como escreve
Pilger no Guardian, "todo
o Pentágono do seu antecessor, George Bush: as suas guerras e os seus crimes de
guerra". "Escolher a ação militar na Síria não só intensificará o
sofrimento no país, como servirá para continuar a impedir que um acordo esteja
ao nosso alcance. (...) Não há solução militar para este conflito." Não é
preciso ser-se ativista contra a guerra para dizer isto. Basta ser-se a
Comissão Independente de Inquérito sobre a Síria, da ONU, em relatório ontem
divulgado em Nova Iorque.
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