Exactamente
a confirmar o que Ana Cristina Santos, investigadora do CES de Coimbra afirma
num artigo de opinião sobre igualdade de género que transcrevemos a seguir do “Público”,
está a referência de Marisa Matias na sua crónica de hoje no DN onde afirma que
“dezasseis mulheres perderam a vida no primeiro semestre deste ano, a maioria delas assassinadas pelos maridos ou companheiros, 15 em casa”.
"As mulheres não têm do que se queixar. Antigamente é que era difícil.
Hoje em dia qualquer mulher tem direitos. Passam o tempo a queixar-se, as
mulheres. Brigas de namorados são como rebuçados, já dizia a minha avó. Há que
saber carregar a sua cruz. Mas não, acham que a vida é como nos filmes, que é
tudo rosas, que só há direitos e não deveres. Conheci uma vez uma que até batia
no marido. E depois não querem ter filhos, claro, e o país está como está.
Carreiristas. Feministas, mal-amadas, só destilam veneno. Mas em vez de olhar para
as questões importantes, só se fala disso, da violência sexual, é drama por
tudo e por nada, até um piropo é sexismo. Já não pode dar-se um espirro, que é
"caldo patriarcal"? Como se o país não tivesse problemas sérios. Tudo
isto é por causa da ideologia de género. Era o que faltava impingirem isto ao
meu menino lá no colégio. Aliás, toda a gente sabe, as raparigas são piores que
os rapazes. Põem-se a jeito. Desmazeladas, ordinárias, não se sabem comportar.
É vê-las quando chegam da noite, ou nos festivais. Lá vão colocando a garganta
na guilhotina - como essa do fumar e, mesmo do beber - mas sempre clamando que
são livres de o fazer. Por mim, morram à vontade: há tanta gente a mais. E lá
no trabalho, que horror, são umas intriguistas. Piores que os homens, basta
perguntar a qualquer mulher".
Estes são alguns dos comentários que tenho recebido a propósito de artigos
escritos sobre género e sexualidade. Estou certa de que reconhecemos este tipo
de argumentação. E porque a universidade nem sempre se mune dos instrumentos
mais eficazes contra a demagogia e o populismo, entrar neste debate coloca-nos
hoje enormes desafios. Por isso, importa recordar factos e extrair as
conclusões que se exigem.
Facto 1: meio milhar de mulheres morreram em Portugal desde que, em 2004, o
Observatório
de Mulheres Assassinadas da UMAR começou a fazer um mapeamento dos
assassinatos em Portugal. Só nos primeiros 6 meses deste ano, pelo menos 16
mulheres foram mortas, 11 das quais por homens com quem mantinham relações de
intimidade: maridos, companheiros, namorados. Muitas delas haviam sinalizado a
violência de que eram alvo junto de pessoas amigas e familiares. A voz destas
mulheres não foi ouvida.
Facto 2: perante uma acusação de tentativa de violação de uma atleta
finlandesa durante os Jogos Europeus Universitários, organizados em Coimbra em
julho, o autarca Manuel Machado desvalorizou o incidente, aludindo a um alegado
ressentimento por parte da Finlândia que perdera para Portugal o concurso para
organizar o evento. A atleta pediu ajuda, não a obteve, e toda a equipa acabou
por ser transferida para um hotel, por se verificarem ataques sucessivos à
segurança das atletas. A voz destas mulheres não foi ouvida.
Facto 3: dois meses após o cancelamento do musical Billy Elliot acusado de
encorajar a homossexualidade, a Hungria acaba de banir o ensino de Estudos de
Género das suas universidades. Perante esta gravíssima decisão, a Associação
Europeia de Sociologia emitiu esta semana um comunicado em que insta
o primeiro-ministro Orbán a reconsiderar esta decisão, recordando que as
diferenças de género são um problema estrutural e não ideológico, e que um
ataque aos Estudos de Género só pode ser interpretado como um ataque às
Ciências Sociais no seu todo.
Paralelamente aos factos emerge uma expressão distópica que visa
descredibilizar trabalho consolidado na área da igualdade e da cidadania sexual
– a designada ideologia de género. Para quem fala de ideologia de género, o
mundo divide-se – naturalmente – entre mulheres e homens. Da naturalização
dessa divisão binária decorrem papéis e expetativas sociais que são distintas.
Não se pode, portanto, falar de igualdade, quando as mulheres são naturalmente
assim, e os homens são naturalmente assado. Defendem que as diferenças são
boas, complementares até, e que questionar a desigualdade levará ao fim da humanidade.
Este argumento ideológico é balizado por pérolas homofóbicas e transfóbicas,
sem robustez científica e com ampla desonestidade intelectual.
Como confirmado, por
exemplo, pelo Índice Europeu de Igualdade de Género
produzido pela União Europeia, o género não é ideologia, é um elemento
estrutural, equivalente a outros como a classe ou a origem étnica. Se o género
não é ideológico, já os mecanismos utilizados para atacar a igualdade de género
resultam de uma ideologia totalitária. A mais insidiosa ideologia de género é
aquela que assassinou a vereadora Marielle Franco há cinco meses, por ser uma
voz inconveniente de uma mulher lésbica negra brilhante que rejeitou o lugar da
domesticidade quieta e do fado heteroreprodutor. Para quem defende que o género
é uma ideologia, Marielle corporizava o direito à liberdade de ser e sentir
para além das ideologias alheias.
Ideológica é a missão de travar a
produção de conhecimento nesta área, remetendo-a para o lugar da não-ciência.
Ideológica é a tentativa concertada de introduzir escalas de gravidade na
violência de género, de filtrar o que pode se dito e o que deve ser silenciado.
Ideológico é o regime patriarcal que permite que vozes de mulheres batidas e de
atletas assediadas continuem a não ser ouvidas no Portugal de 2018.
Da
próxima vez que me perguntarem para que serve ainda o feminismo e para que
servem afinal os Estudos de Género a resposta está pronta: para confirmar que
vivemos em democracia, que resistimos ao totalitarismo, que permanecemos
pessoas pensantes, plenas e livres. E que não há machado ideológico que corte a
raiz ao pensamento.
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