A
participação de Marine Le Pen na relação de oradores da Web Summit de Lisboa deste
ano tem levantado muitos comentários contrarios, partindo-se da ideia de que
estamos perante uma personalidade que está a usar o regime democrático para, em
última instância, tentar destruí-lo. Disso, não podem resultar quaisquer
dúvidas porque, se Le Pen se alcandorasse ao poder com uma maioria que lhe
permitisse alterar o regime democrático, não hesitaria nem um momento.
A
democracia não pode, por isso, dar-se ao luxo de abrir uma caixa de Pandora
cujo resultado poderia ser catastrófico. Não nos podemos esquecer que a
conquista do poder por Hitler se fez por via de eleições e, uma vez lá
instalado, rapidamente se tornou ditatorial. O regime democrático tem muitos
defeitos mas a ditadura tem muito mais e os portugueses mais velhos sabem-no
muitíssimo bem porque sofreram na pele os seus efeitos. Se deixarmos eclodir o
ovo da serpente, então, poderá ser tarde demais…
A
permissão de organizações de cariz abertamente fascista, racista ou xenófoba
numa sociedade como a nossa, é o tema do seguinte artigo de opinião de Miguel Romão,
Prof. da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa no “Público” de hoje,
cujo conteúdo apresentamos a seguir.
No
momento em que escrevo, confesso que não faço ideia se Marine Le Pen faz parte
do rol de oradores da Web Summit de Lisboa em 2018. Sei que já foi anunciada
como tal e eventualmente removida dessa condição e entretanto supostamente
regressada. Mas pode servir esta provocação – no fundo, é disso que se trata,
não seguramente de uma intervenção decisiva sobre tecnologia e futuro – para
reflectir um pouco sobre se o direito de usar da palavra deve servir ou não
àqueles que pretendem o fim das nossas liberdades colectivas e um mundo novo,
pior, com conteúdos e fronteiras muito diferentes das de hoje (mesmo se Le Pen
parece ser mais uma oportunista de conveniência do que propriamente a
revolucionária convicta em condições de mudar o mundo – you wish!...).
Recordo
sempre que os alunos do primeiro ano da Faculdade de Direito gostam de
questionar uma limitação que a nossa Constituição de 1976 apresenta: a de
limitar a possibilidade de serem legalmente constituídas organizações racistas
ou fascistas. Costumamos discutir sobre se os regimes políticos democráticos
têm ou não a legitimidade de poderem levantar limites a quem, em última
análise, pretenda o seu fim, ou seja, qual a legitimidade da democracia para se
auto-limitar, tendo em vista a sua defesa e preservação? As respostas são, como
convém, variadas.
De
algum modo, é o mesmo raciocínio de base que está em causa quando o Tribunal
Europeu dos Direitos do Homem aprecia questões em torno da possibilidade de
negação do Holocausto e do discurso sobre a realidade histórica dos campos de
concentração da Alemanha nazi e da sua legitimidade.
Pode
surpreender muitos a quantidade de “estudos históricos” que se dedicam
simplesmente a branquear o regime nazi e a criar uma narrativa alternativa da
História, que abra caminhos futuros a dúvidas e interpretações divergentes da
realidade. Falamos de pessoas que trabalham para os séculos futuros e se sentem
mártires justos hoje. Existem até artigos sobre “engenharia” que, por exemplo, procuram
demonstrar que nunca poderia ter sido tecnicamente possível o tipo de genocídio
que a História regista porque simplesmente o equipamento de gaseamento
disponível nos campos de concentração não permitiria tão elevado nível de
“produtividade”, entre outras pérolas.
Cabe no
mesmo campo de apreciação a legitimidade da criação de um tipo penal como seja
por exemplo o da “negação ou banalização” de crimes contra a Humanidade, desde
logo a banalização de genocídios, discussão difícil em que a União Europeia
entrou na década passada, por pressão dos países do Báltico e do Leste europeu,
em boa parte por revanchismo e má consciência em relação à ex-União Soviética,
sem grande sucesso ou apaziguamento.
Como se
articula então a defesa da liberdade de opinião e de expressão plenas com a
própria génese de um regime democrático e os seus princípios? Pode, sendo algo
simplista, um tirano em potência ter direito ao seu tempo de antena e ao seu
espaço próprio em democracia?
A
resposta não é fácil e o direito, note-se, não é o melhor campo de descoberta
desta resposta. O direito como construído pela legalidade do momento vive ainda
o drama de ter sido também o legitimador das maiores atrocidades na Europa de
meados do século passado e em diversas partes do mundo, antes e depois.
Sabemos o que sabemos. A resposta
fácil – e provavelmente, na sua estrutura, a correcta – é a de não deixar falar
quem propõe, sem rodeios, a negação do que entendemos justo e devido. Mas será
isso a resposta prudente, adequada, politicamente racional? Não levará esta
visão supostamente epidérmica e emocional da defesa da democracia afinal ao seu
enfraquecimento? Não está a democracia em condições de ganhar no debate e não
apenas através do silenciamento da sua oposição? Se a resposta for negativa,
estamos pior do que pensamos. E a vitória, lamento dizê-lo, não se afirmará
nunca simplesmente pela força da lei, seja ela qual for.
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