Nada
justifica o assassinato inclemente de crianças. E nada é nada.
No
mundo em que vivemos, com a comunicação social completamente açaimada, aparecem
logo as mais descaradas fundamentações por parte dos poderosos, para explicarem crimes hediondos como aquele que
teve lugar esta semana no Norte do Iémen em que um autocarro cheio de crianças
foi atacado por “aviões sauditas causando a morte e ferimentos a
mais de 70”. Tudo isto aconteceu sem que se levantasse um coro de protestos a
nível mundial porque a situação acabou abafada nas páginas interiores de
jornais e remetida para o final dos noticiários televisivos como um dano
colateral, enfim, o normal numa guerra.
Não temos a mais pequena
dúvida de que tal não aconteceria se o assassínio destas crianças tivesse sido
cometido por um regime desafecto do chamado mundo ocidental e, em particular,
dos Estados Unidos.
É este o tema de fundo do
artigo de opinião assinado pelo advogado Domingos Lopes no “Público” de hoje,
que reproduzimos a seguir.
O nosso mundo perdeu a vergonha, se é que alguma vez a
teve. Só o preocupa o que o pode sossegar. E só o desassossega as grandes
notícias que absorve.
Na verdade, deixar que nos digam o que está certo ou
errado é desde logo um modo de nos formatar no que se refere aos grandes
acontecimentos que marcam a vida das pessoas e das comunidades. Seguindo o
trilho, evita que tenhamos de pensar. Pensar é trabalhoso. Olhar é mais fácil.
É a essa luz que de vez em quando somos abanados por
notícias que vão directamente para as paredes mais sensíveis das nossas almas.
As notícias frenéticas e brutais do envenenamento de
um espião russo que passou a trabalhar para o Reino Unido, trocando de patrão,
colocaram o mundo ocidental a expulsar, em catadupa, diplomatas russos, não
sendo ainda hoje claro quem foi o autor do envenenamento. Em represália, Putin
procedeu do mesmo modo.
Esta semana, um autocarro cheio de crianças iemenitas
foi atacado no Norte do Iémen por aviões sauditas causando a morte e ferimentos
a mais de 70. Tais mortes não mereceram sequer reparos por parte dos
governantes que expulsaram os diplomatas russos. Até os media, em geral,
se mantiveram indiferentes.
Os assassinos das crianças justificaram o ataque para
prevenir que elas pudessem vir a ser usadas como escudos... Isto é, os sauditas
invadem o Iémen para matar crianças porque temem o futuro e sabem que ocupam
terra que não é sua.
Trump, desmiolado, preocupado em mandar no mundo a
partir de um exército espacial, como nos filmes, apoia fervorosamente a Arábia
Saudita. Tem uma paixão desmedida pelo príncipe herdeiro saudita e por
Netanyahu; une-os o seu ódio aos palestinianos e iranianos. São homens que
prezam armas e a morte.
Choca que os mortos que lutam pelos seus direitos
nacionais sejam danos colaterais acidentais dos amigos ocidentais. Por quanto
tempo os mais poderosos vão poder continuar a fazer deste mundo arenas de
horror?
As crianças mortas pelos mísseis sauditas vendidos
pelos EUA constituem uma marca indelével da ferocidade do regime absolutista de
Salman. Estas mortes são crimes contra todos os seres humanos justos e
passiveis de humanismo. Violam o direito internacional de modo grosseiro e
violento.
Bem andou António Guterres em ordenar na ONU um
inquérito, embora se saiba que quando chegarem as conclusões as emoções andem
por outras bandas.
Por
cá, como não houve mortes no incêndio de Monchique, andam a descobrir as falhas
do Governo, servindo em doses cavalares reportagens pornográficas das desgraças
dos desgraçados.
De tantos mundos é feito o mundo
em que vivemos. Se as crianças iemenitas assassinadas a sangue frio por mísseis
sauditas fossem ocidentais, já aviões destes países estavam a disparar mísseis
para vingar as criancinhas, como gosta de alegar Trump para justificar os
bombardeamentos da Síria. As da Síria alegadamente vítimas de bombardeamentos
sírios fazem o mundo chorar; as do Iémen não devem ser humanas. Os mortos
humanos não são iguais. Há os que não contam; eram empecilhos, podiam vir a ser
terroristas.
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