O
Serviço Nacional de Saúde (SNS) pode ser justamente considerado a maior
conquista da democracia. Fazendo jus ao olhar de soslaio com que sempre encarou
o regime democrático, a direita votou em bloco contra a lei que criou o SNS em
1979 e nunca escondeu a vontade de o sabotar, aguardando a melhor oportunidade
para lhe desferir o golpe fatal. A ocasião propícia surgiu em 1990 e a direita,
sem pestanejar, meteu mãos à obra pois não queria deixar de propiciar às forças
cujos interesses realmente defende um excelente ensejo para um negócio altamente
lucrativo e quase sem riscos. Em substituição do SNS foi, então, criada “uma
Lei de Bases da Saúde com as características que se lhe conhecem”.
Recentemente,
o socialista António Arnault, considerado o “pai do SNS” e João Semedo, médico,
ex-deputado e ex-dirigente do Bloco de Esquerda publicaram uma proposta de uma
Nova Lei de Bases da Saúde, com a intenção de fazer regressar ao SNS a sua
pureza original, aproveitando a existência de uma maioria de esquerda no
Parlamento. Infelizmente já são os dois falecidos mas o projecto que defenderam
tem pés para andar caso o PS não o venha a minar com o apoio da direita. Os receios
de que isto aconteça são muitos e justificados e, por isso mesmo, é bom que não
baixemos os braços perante uma luta que diz respeito à maioria dos portugueses,
aquela que diz respeito à nossa saúde e qualidade de vida.
O
texto que apresentamos a seguir, transcrito do “Público” de hoje, é mais um
alerta aos nossos cidadãos por parte do médico e prof. de Saúde Pública, Cipriano
Justo.
Numa recente troca de argumentos, discutiam-se as
razões por que na Lei de Bases da Saúde que vier a ser aprovada pela Assembleia
da República não deve estar prevista a possibilidade de os sectores social e
privado poderem vir a deter a gestão dos estabelecimentos do SNS. Se na relação
público/privado, circunstancialmente pode tornar-se necessário proceder à
aquisição de produção a esses sectores, mediante o cumprimento de condições
explícitas previamente estabelecidas e garantidas - considerando o diferencial
entre a limitação da capacidade de resposta, as necessidades e a procura prevista
- já o mesmo não se passa com o recurso às parcerias público-privadas.
Está-se ciente que a internalização dessa produção, por via da melhor utilização da capacidade instalada mas também da sua expansão e adequação, têm custos, os quais, nas quatro parcerias actualmente em vigor - Braga, Vila Franca de Xira, Cascais e Loures - representam um preço que o SNS tem de pagar às entidades detentoras da gestão desses hospitais, e que, em 2017, foi projectado em 430 milhões de euros.
Está-se ciente que a internalização dessa produção, por via da melhor utilização da capacidade instalada mas também da sua expansão e adequação, têm custos, os quais, nas quatro parcerias actualmente em vigor - Braga, Vila Franca de Xira, Cascais e Loures - representam um preço que o SNS tem de pagar às entidades detentoras da gestão desses hospitais, e que, em 2017, foi projectado em 430 milhões de euros.
Se no que diz respeito à aquisição de produção ao
sector privado pode haver razões que o justifiquem, já relativamente à gestão
no sector público existem suficientes recursos, saberes, competências e
instrumentos para gerir os estabelecimentos do SNS. Não foi estranha a
circunstância de a direita ter votado em bloco contra a lei do SNS, em 1979,
para que, onze anos depois, a mesma direita ter tomado a decisão de criar, em
sua substituição, uma Lei de Bases da Saúde com as características que se lhe
conhecem. Logo que as condições políticas se tornaram favoráveis e a onda da
terceira via estava em alta, tudo se tornou mais fácil para a new public
management começar a fazer o seu caminho também em Portugal. Contudo, não
há-de ser uma particular complexidade daquelas quatro organizações hospitalares
em regime de PPP que hão-de impedir que, também elas, regressem à gestão
pública.
É, então, legítimo explicar o recurso às PPP do sector
da saúde por critérios exclusivamente políticos. A certa altura do crescimento
e desenvolvimento do SNS, foi considerado pelo primeiro governo de maioria
absoluta do PSD que estavam criadas as condições para o sector empresarial dos
cuidados de saúde se estabelecer nesta área dos negócios. Era o aproveitamento
de uma linha de investimento com retorno garantido, sobretudo uma modalidade de
negócio em que o risco estava ausente.
À falta de um histórico de funcionamento de uma
parceria público-privada, foi tomado como ponto de partida e
experiência-piloto, pelo último governo de Cavaco Silva, em 1995, o então
recém-construído hospital Amadora/Sintra. Sem instrumentos de acompanhamento e
avaliação dessa primeira PPP, aproveitando todas as facilidades permitidas pela
actual Lei de Bases da Saúde e iniciado o desinvestimento no sector público
sempre que a direita assumia a governação do país, tudo isso explica o
crescimento e desenvolvimento do sector privado, o qual, descontando a área do
medicamento, já captura actualmente 25% do orçamento do SNS.
Se
a experiência do Amadora-Sintra durou treze anos, tendo terminado em 2008,
outras se seguiram. São os casos dos hospitais de Cascais, em 2009, durante o
governo de José Sócrates, gerido pela Lusíadas Saúde, Braga, em 2011 e Vila
Franca de Xira, em 2013, ambos geridos pela Mello Saúde, Loures, em 2012,
gerido pelo grupo Fidelidade, todos durante o governo de Passos Coelho. No
entanto, um estudo realizado pela ERS, em 2016, concluiu pela inexistência de
“diferenças estatisticamente significativas” entre os resultados das quatro PPP
e trinta e três hospitais em gestão pública. Caía por terra a superioridade da
gestão privada e os seus apregoados ganhos de eficiência.
Por estas razões, mas também porque a
esta conjuntura política deve ser estranho este aproveitamento de bens públicos
por parte do sector empresarial, este terá de ser, obrigatoriamente, um dos
aspectos que os deputados hão-de retirar do articulado da Lei de Bases da Saúde
que vier a ser aprovada pela AR, dando expressão à sentença de um anónimo do
século XXI, a César o que é de César, ao público o que é público.
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