terça-feira, 28 de agosto de 2018

SNS, UMA LUTA QUE DIZ RESPEITO À MAIORIA DOS PORTUGUESES



O Serviço Nacional de Saúde (SNS) pode ser justamente considerado a maior conquista da democracia. Fazendo jus ao olhar de soslaio com que sempre encarou o regime democrático, a direita votou em bloco contra a lei que criou o SNS em 1979 e nunca escondeu a vontade de o sabotar, aguardando a melhor oportunidade para lhe desferir o golpe fatal. A ocasião propícia surgiu em 1990 e a direita, sem pestanejar, meteu mãos à obra pois não queria deixar de propiciar às forças cujos interesses realmente defende um excelente ensejo para um negócio altamente lucrativo e quase sem riscos. Em substituição do SNS foi, então, criada “uma Lei de Bases da Saúde com as características que se lhe conhecem”.
Recentemente, o socialista António Arnault, considerado o “pai do SNS” e João Semedo, médico, ex-deputado e ex-dirigente do Bloco de Esquerda publicaram uma proposta de uma Nova Lei de Bases da Saúde, com a intenção de fazer regressar ao SNS a sua pureza original, aproveitando a existência de uma maioria de esquerda no Parlamento. Infelizmente já são os dois falecidos mas o projecto que defenderam tem pés para andar caso o PS não o venha a minar com o apoio da direita. Os receios de que isto aconteça são muitos e justificados e, por isso mesmo, é bom que não baixemos os braços perante uma luta que diz respeito à maioria dos portugueses, aquela que diz respeito à nossa saúde e qualidade de vida.
O texto que apresentamos a seguir, transcrito do “Público” de hoje, é mais um alerta aos nossos cidadãos por parte do médico e prof. de Saúde Pública, Cipriano Justo.
Numa recente troca de argumentos, discutiam-se as razões por que na Lei de Bases da Saúde que vier a ser aprovada pela Assembleia da República não deve estar prevista a possibilidade de os sectores social e privado poderem vir a deter a gestão dos estabelecimentos do SNS. Se na relação público/privado, circunstancialmente pode tornar-se necessário proceder à aquisição de produção a esses sectores, mediante o cumprimento de condições explícitas previamente estabelecidas e garantidas - considerando o diferencial entre a limitação da capacidade de resposta, as necessidades e a procura prevista - já o mesmo não se passa com o recurso às parcerias público-privadas.

Está-se ciente que a internalização dessa produção, por via da melhor utilização da capacidade instalada mas também da sua expansão e adequação, têm custos, os quais, nas quatro parcerias actualmente em vigor - Braga, Vila Franca de Xira, Cascais e Loures - representam um preço que o SNS tem de pagar às entidades detentoras da gestão desses hospitais, e que, em 2017, foi projectado em 430 milhões de euros.
Se no que diz respeito à aquisição de produção ao sector privado pode haver razões que o justifiquem, já relativamente à gestão no sector público existem suficientes recursos, saberes, competências e instrumentos para gerir os estabelecimentos do SNS. Não foi estranha a circunstância de a direita ter votado em bloco contra a lei do SNS, em 1979, para que, onze anos depois, a mesma direita ter tomado a decisão de criar, em sua substituição, uma Lei de Bases da Saúde com as características que se lhe conhecem. Logo que as condições políticas se tornaram favoráveis e a onda da terceira via estava em alta, tudo se tornou mais fácil para a new public management começar a fazer o seu caminho também em Portugal. Contudo, não há-de ser uma particular complexidade daquelas quatro organizações hospitalares em regime de PPP que hão-de impedir que, também elas,  regressem à gestão pública. 
É, então, legítimo explicar o recurso às PPP do sector da saúde por critérios exclusivamente políticos. A certa altura do crescimento e desenvolvimento do SNS, foi considerado pelo primeiro governo de maioria absoluta do PSD que estavam criadas as condições para o sector empresarial dos cuidados de saúde se estabelecer nesta área dos negócios. Era o aproveitamento de uma linha de investimento com retorno garantido, sobretudo uma modalidade de negócio em que o risco estava ausente.
À falta de um histórico de funcionamento de uma parceria público-privada, foi tomado como ponto de partida e experiência-piloto, pelo último governo de Cavaco Silva, em 1995, o então recém-construído hospital Amadora/Sintra. Sem instrumentos de acompanhamento e avaliação dessa primeira PPP, aproveitando todas as facilidades permitidas pela actual Lei de Bases da Saúde e iniciado o desinvestimento no sector público sempre que a direita assumia a governação do país, tudo isso explica o crescimento e desenvolvimento do sector privado, o qual, descontando a área do medicamento, já captura actualmente 25% do orçamento do SNS.
Se a experiência do Amadora-Sintra durou treze anos, tendo terminado em 2008, outras se seguiram. São os casos dos hospitais de Cascais, em 2009, durante o governo de José Sócrates, gerido pela Lusíadas Saúde, Braga, em 2011 e Vila Franca de Xira, em 2013, ambos geridos pela Mello Saúde, Loures, em 2012, gerido pelo grupo Fidelidade, todos durante o governo de Passos Coelho. No entanto, um estudo realizado pela ERS, em 2016, concluiu pela inexistência de “diferenças estatisticamente significativas” entre os resultados das quatro PPP e trinta e três hospitais em gestão pública. Caía por terra a superioridade da gestão privada e os seus apregoados ganhos de eficiência.
Por estas razões, mas também porque a esta conjuntura política deve ser estranho este aproveitamento de bens públicos por parte do sector empresarial, este terá de ser, obrigatoriamente, um dos aspectos que os deputados hão-de retirar do articulado da Lei de Bases da Saúde que vier a ser aprovada pela AR, dando expressão à sentença de um anónimo do século XXI, a César o que é de César, ao público o que é público.

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