Depois
de muitas suspeitas, de muitos encobrimentos, de muitas manipulações da
verdade, chegou finalmente a certeza de que o glifosato, um herbicida fabricado
pela Monsanto é, sem sobra de dúvida, potencialmente cancerígeno. Agora já não
há qualquer incerteza sobre este facto a que se deve acrescentar que a combinação
do glifosato com outros produtos o torna ainda mais perigoso.
No
texto que reproduzimos a seguir, transcrito do “Público”, o seu autor, João
Arriscado Nunes (*) refere a condenação da Monsanto ao pagamento de uma indemnização
de 260 milhões de dólares a um jardineiro americano depois de se ter provado
que o cancro de que sofre teve origem no contacto prolongado com o herbicida
Roundup produzido por aquela multinacional.
Por
outro lado, João Arriscado Nunes relata também que no Brasil o Governo Temer se
mostrou um mãos largas quanto à utilização de agrotóxicos na agricultura – nada
que nos cause admiração.
O
que nos deve indignar é a posição tomada pela UE ao renovar “recentemente por cinco anos a licença de utilização de agrotóxicos” no espaço europeu. Isto também nos
mostra como ainda se movem bem os tentáculos de multinacionais como a Monsanto…
No dia 11 de agosto, um júri norte-americano tomou a
decisão histórica de condenar a multinacional Monsanto - recentemente adquirida
pela Bayer - ao pagamento de uma indemnização de mais de 260 milhões de dólares
a um jardineiro, Dewayne Johnson. Johnson processou a multinacional alegando
que a exposição continuada ao herbicida Roundup, produzido pela Monsanto,
estaria na origem do cancro que o afeta, já em fase terminal. Este é um dos
mais de 4000 processos que enfrenta a Monsanto naquele país, e constitui um
precedente importante para o desfecho de processos futuros.
Contribuíram para essa decisão o confronto entre
peritos chamados a testemunhar, o testemunho de Dwayne Johnson e da sua esposa,
e o acesso a documentos internos de circulação interna da Monsanto mostrando
que a empresa ocultara informações sobre os riscos para a saúde associados ao
uso do Roundup, seguindo uma estratégia adotada, durante décadas, pelas
empresas tabaqueiras. A Agência Internacional de Investigação sobre o Cancro,
da Organização Mundial de Saúde, definiu recentemente o glifosato, o
ingrediente ativo na base do Roundup, como um provável carcinogénio, a
partir de uma avalição dos estudos científicos publicados. Em maio deste ano,
estudos realizados no âmbito do Programa Nacional de Toxicologia dos Estados
Unidos observaram que os herbicidas baseados em glifosato apresentam maior
efeito tóxico do que o próprio ingrediente ativo. Neste cenário, seria de
esperar que a resposta pública aos efeitos dos agrotóxicos fosse, pelo menos,
uma resposta prudente. Em Portugal, e apesar das dificuldades em assegurar o
cumprimento da lei, foi recentemente, proibido o uso, em espaços públicos como
jardins, de produtos baseados no glifosato. Diferente foi a posição da União
Europeia, ao renovar recentemente por cinco anos a licença de utilização de
agrotóxicos tendo o glifosato como ingrediente ativo, reconhecendo embora o
direito dos Estados-membros de proibir o seu uso.
Mas enquanto decorria o processo nos Estados Unidos, o
Congresso de Deputados do Brasil, o país do mundo que mais consome agrotóxicos,
aprovava o Projeto-Lei 6.299, já conhecido como Pacote do Veneno, que promove
medidas de desregulação da vigilância sanitária e ambiental sobre o uso dos
agrotóxicos na agricultura e a desoneração fiscal destes, aguardando apenas a
votação no Senado para a sua aprovação final. O projeto é apoiado pelo
agronegócio, assim como pelo atual governo. Contra essa política foram criadas,
nos últimos anos, plataformas que mobilizam movimentos, associações e
organizações de agricultores, trabalhadores rurais, comunidades tradicionais,
consumidores, profissionais de saúde, investigadores e cineastas que apostam na
criação de um outro conhecimento e de uma ciência comprometida com a saúde, a
segurança, a vida e o ambiente. Para além de uma importante documentação de
casos individuais de problemas de saúde associados ao uso de agrotóxicos e à
imposição de monoculturas, foram identificados e descritos os efeitos do uso
destes na contaminação de pessoas - trabalhadores e consumidores -, da
terra, do ar e da água. Dessa movimentação resultaram, entre outros, um dossiê
sobre os agrotóxicos e uma publicação do Ministério do Desenvolvimento Agrário,
de 2015, que apresentou uma análise detalhada de 750 estudos publicados em
revistas científicas indexadas nas principais bases de dados, mas geralmente
ignorados na decisão política, sobre o uso de transgénicos na agricultura,
incluindo a sua dependência do uso de agrotóxicos. Mais recentemente, um dossiê
sobre o já citado Pacote do Veneno divulgou o conjunto das notas técnicas sobre
o tema produzidas por instituições e organizações científicas como a Fundação
Oswaldo Cruz, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva e diferentes organismos
do Estado e organizações da sociedade ligados aos setores da saúde e do
ambiente.
A
imposição de um modelo de monocultura que liquida a biodiversidade e a própria
viabilidade de outros modelos de produção agrícola e alimentar – tem uma
outra face, a da imposição de uma monocultura do conhecimento, através da
supressão ativa da diferença e do debate interno à ciência – incluindo a
intimidação e ameaças a investigadores -, mas também de toda a experiência e
conhecimento que não seja certificado pelos critérios dessa monocultura, em
particular o que é produzido a partir dos testemunhos de pessoas e comunidades
expostas aos efeitos dos agrotóxicos. Dados oficiais recentemente publicados mostram
que, apesar do aumento do uso de agrotóxicos nos últimos anos, não cresceu a
produção de alimentos pelo agronegócio, ao contrário do que foi ativamente
propagandeado. É um dado conhecido que a maioria dos alimentos consumidos pela
população brasileira provém da agricultura familiar, não do agronegócio.
O
processo recente nos Estados Unidos pode ser entendido, assim, como parte de
uma batalha mais ampla pela defesa da saúde humana, da biosfera e da ecosfera,
e pela promoção de formas sustentáveis e livres de tóxicos de produção de
alimentos, que encontram nas múltiplas experiências de agroecologia e
agricultura familiar expressões que parecem modestas, mas que têm um imenso
alcance enquanto manifestações emergentes ou de resistência de outras formas possíveis
de viver com a terra e com a vida. Uma frente importante dessa batalha
encontra-se, como mostra o caso do Brasil, no envolvimento ativo de
investigadores e de instituições científicas na construção de um conhecimento
comprometido com o interesse público, com a defesa da saúde e do ambiente.
(*) Investigador do CES e Professor da Faculdade de Economia
da Universidade de Coimbra
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