Aqui
fica mais uma transcrição de um artigo de opinião de João Camargo, especialista
em alterações climáticas, que veio à estampa no “Público” de hoje. Desta vez,
Camargo aborda a situação que tem lugar na Austrália onde os defensores dos
combustíveis fósseis têm apoios (políticos e outros) de peso o que impede a
implementação de quaisquer medidas de política climática. Imagine-se que naquele
país do Pacífico, com enormes potencialidades em termos de aproveitamento da
energia solar, apenas 6% da energia tem origem renovável…
Temos
aqui mais um exemplo de como interesses egoístas poderosíssimos não têm
qualquer pejo em colocar em causa “a viabilidade futura da civilização humana” se isso
significar um aumento exponencial dos seus lucros. Na sua ganância nem se
lembram de que, uma vez destruída a humanidade, não ficarão cá para ver o que
vem a seguir… É sobre esta ideia que devemos reflectir ao lermos este artigo de
opinião de João Camargo que recomendamos vivamente.
A
Austrália está neste momento na pior seca da sua história registada. A Grande
Barreira do Coral perdeu metade dos seus corais em 2016 e 2017. Incêndios
florestais abundantes durante o Inverno. Tal como Portugal, a Austrália está
numa das zonas do mundo mais vulneráveis às alterações climáticas. No meio
desta profunda crise ambiental, ocorre também uma crise política. Malcolm
Turnbull, o primeiro-ministro de centro-direita, acaba de ser derrubado, num
esforço concertado da ala conservadora do seu partido, do lobby do
carvão e da imprensa liderada por Rupert Murdoch. No centro da crise esteve a
proposta de Turnbull para cortar emissões de gases com efeito de estufa.
Embora
não pareça senão mais um golpe palaciano de poder, substituindo um
primeiro-ministro por outro sem eleições, a crise política na Austrália é o
último episódio de uma história com mais de um década, a saga de tentar fazer
algo para combater as alterações climáticas num território altamente vulnerável
às mesmas mas que tem presente um poderosíssimo lobby
industrial fóssil. A Austrália é o 4.º produtor mundial de carvão, sendo ainda
o 1.º exportador do globo. No país, gigantes industriais como a Rio Tinto, a
BHP Billiton e a Peabody têm uma enorme influência na política e na
imprensa.
A
Austrália, que assinou o Acordo de Paris, foi em 2016 o 16.º maior emissor
absoluto de dióxido de carbono (entre a Turquia e o Reino Unido), sendo o 12.º
emissor per capita. Apesar de ser signatário do Acordo de Paris, em
2017 a Austrália bateu o seu recorde máximo de emissões, com os três primeiros
meses de 2018 a baterem também recordes. A energia primária do país é dominada
pelos combustíveis fósseis, sendo que em 2015-2016, 37% provinham do petróleo,
32% do carvão e 25% de gás. Apenas 6% têm origem renovável.
No
final de 2017, Malcolm Turnbull, primeiro-ministro australiano, propôs uma
espécie de política energética nacional, o NEG — National Energy Guarantee,
incluindo um plano para baixar os preços da electricidade e um corte de
emissões aplicado às empresas energéticas. Este corte estava em linha com o
Relatório Finkel, de 2016, que avaliava o futuro da energia no país, propondo
cortar as emissões abaixo dos objectivos do Acordo de Paris, uma redução de 26%
a 28% de emissões até 2030 (comparado com 2005).
Esta
era a situação até há duas semanas, mas a disputa dramática por políticas
climáticas recua mais do que uma década. Em 2007, o primeiro-ministro Kevin
Rudd, do partido trabalhista (centro-esquerda), assumiu que “as alterações
climáticas são o maior desafio moral do nosso tempo”, introduzindo no ano
seguinte uma proposta próxima do comércio de licenças de carbono (CPRS — Carbon
Pollution Reduction Scheme). Depois de aprovado no Parlamento, o CPRS foi
chumbado no Senado, apesar do apoio de parte do partido liberal, liderado por
Malcolm Turnbull. Perante este apoio de Turnbull, Tony Abbott, da ala mais
conservadora do partido liberal, desafiou a liderança de Turnbull e
conquistou-a. Em 2009, o CPRS foi chumbado no Senado pela segunda vez e o
partido trabalhista desistiu da proposta, introduzindo em alternativa uma “taxa
de carbono” que isentava muitas das empresas mais poluidoras. Entra em vigor em
2012. No ano seguinte, Kevin Rudd propõe a substituição da “taxa de carbono”
por um novo esquema de comércio de emissões. Numa campanha fortemente
influenciada pela contestação à taxa de carbono, em 2013 o partido liberal
ganhou as eleições e Tony Abbott acabou com a “taxa de carbono” e fechou vários
departamentos governamentais relacionados com alterações climáticas. Dois anos
depois, Turnbull derrubou Abbott numa disputa interna, quando os cortes
orçamentais de Tony Abbott abalaram a sua popularidade. Perante a mais que
modesta proposta de Turnbull de reduzir emissões, houve recentemente uma nova
revolta dentro do partido liberal, liderado por Peter Dutton (muito próximo de
Tony Abbott), que ameaçou a liderança de Turnbull. O primeiro-ministro deixou imediatamente cair a proposta
de cortes de emissões. Poucos dias depois, caiu.
As
propostas de Malcolm Turnbull eram muito insuficientes para combater as
alterações climáticas e dificilmente constituíam um grande empecilho às grandes
empresas fósseis. Sob Turnbull, aumentaram os apoios a projectos de extracção
de combustíveis
fósseis, explodiu o apoio à indústria de gás fóssil (gás
“natural”), aumentando o incentivo à exportação do gás natural liquefeito (LNG)
na Austrália Ocidental e em Queensland com mais as emissões fugitivas da
produção de gás, e aumentaram as emissões de gases com efeito de estufa em
geral. Mas a força dos poderes fósseis instalados não aceita qualquer cedência,
qualquer obstáculo aos seus interesses. Tony Abbott, o ex-primeiro-ministro que
apoiou esta rebelião a partir dos bastidores, é mais claro: é preciso seguir o
exemplo de Trump e a Austrália deve sair do Acordo de Paris.
A
resistência a qualquer acção que vise reduzir o uso de carvão e o corte de
emissões de gases com efeito de estufa foi liderada dentro do Parlamento pelo
chamado “Monash Forum”, uma coligação de deputados que quer que a Austrália
apoie as indústrias fósseis com mais dinheiros públicos, e por fora com think thanks como o Institute of Public Affairs e a imprensa
dominada por Rupert Murdoch. O multimilionário Rupert Murdoch, dono da Fox News
e do Wall Street Journal nos Estados
Unidos, do The Sun e da Sky News em Inglaterra e da News Corp. na
Austrália, produz 60% de todos os jornais em circulação na Austrália, assim
como a única rede de TV de cabo nacional. A campanha levada a cabo por jornais
como The Australian, Herald
Sun, Courier Mail e The
Daily Telegraph e por televisões como a 2GB e a Sky News foi
decisiva para o fim de Turnbull e de qualquer ensaio de política climática.
As políticas climáticas estão cada vez
mais no centro da vida política, apesar da enorme dificuldade em passar
mensagem, com o foco a colocar-se sempre sobre o teatralismo dos actos em vez
de sobre a política dos mesmos. A enorme permeabilidade da imprensa e da
política aos interesses organizados das indústrias fósseis (neste caso, do
carvão; noutros, do petróleo e do gás) não é apenas um problema para a
democracia e para o direito das populações de decidir o seu futuro. É um
problema porque, nos dias de hoje, continuar a garantir os interesses destas
indústrias corresponde a destruir a viabilidade futura da civilização humana.
Terá de haver vários governos a cair por políticas climáticas, mas, ao
contrário do caso australiano, terão de cair os que não fazem o suficiente.
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