Uma
das características mais conhecidas da acção de governos de extrema-direita é o
ataque desenfreado às fontes de onde emana o conhecimento já que quanto mais
ignorante um povo for, mais facilmente é dominado, como nós sabemos em relação ao
período da ditadura que vigorou em Portugal durante quase meio século. Nessa altura,
para os responsáveis políticos, bastava que cada português não soubesse mais
que ler escrever e contar.
Para
os regimes ditatoriais, o pensamento crítico é coisa para afastar das mentes do
povo pois isso coloca em causa o poder instituído. Assim, não admira, que as
Universidades sejam das instituições mais atacadas por regimes de
extrema-direita como já se está a observar no Brasil.
O
texto seguinte é um artigo de opinião do investigador do CES e Prof. da FEUC
onde o tema é precisamente a criminalização do conhecimento já projectada para
o Brasil.
Os últimos anos têm sido marcados pelos
sucessos eleitorais, em várias regiões do mundo, de projetos autoritários
protagonizados por partidos e movimentos que defendem posições de
extrema-direita, racistas, xenófobas, sexistas e homofóbicas, e de demonização
e criminalização dos setores mais vulnerabilizados da sociedade. Uma
característica comum desses movimentos é a utilização crescente de novas formas
de comunicação digital, como o Twitter ou o WhatsApp, que permitem o acesso
direto ou via trolls e bots a milhões de eleitores/as, sem passar
pelos meios de comunicação social convencionais, como a imprensa ou a
televisão, ou pelos fóruns de debate organizados durante as campanhas
eleitorais, que, com todas as suas limitações, permitiam o confronto presencial
dos projetos e propostas de quem se candidata a cargos políticos.
O uso das novas plataformas para a disseminação e proliferação de
notícias e informações falsas, trivializadas sob a designação de fake news,
tem conseguido, com assinalável sucesso, alimentar a erosão da democracia representativa
e do debate político na esfera pública. Mas essa erosão não é explicável apenas
pelas estratégias de comunicação digital dos novos populismos. Ela articula-se
com, e é consolidada pelas tentativas de silenciamento ou supressão da crítica
e das manifestações de dissidência intelectual, política, cultural e social.
Por isso, antes e depois de chegarem ao poder, os novos populismos multiplicam
os ataques a intelectuais, artistas, jornalistas, professores, investigadores,
estudantes e ativistas de movimentos sociais. Nesse processo, as universidades
e os que nelas trabalham – professores, estudantes, investigadores,
funcionários – tornam-se alvos preferenciais a abater ou a desacreditar.
Entre as instituições mais
atacadas pela ofensiva autoritária no Brasil, desde o processo de destituição
de Dilma Rousseff em 2016, encontram-se precisamente as universidades. Ao longo
do último século, e desde a declaração de Córdoba, na Argentina, que em 2018
formulou o projeto de uma universidade ao serviço de projetos de construção
nacional, assente nos três pilares da produção de conhecimento, do ensino e
formação e da extensão, a instituição universitária tem passado por
transformações profundas e contraditórias. Entre a adesão à lógica neoliberal,
com a crescente dependência de financiamentos privados e da subordinação a uma
lógica produtivista e de criação de valor e as lutas pela autonomia
universitária e pela afirmação da instituição como espaço de criação e ciência,
de saber e de cultura, de liberdade de ensinar e aprender e de exercício do
pensamento crítico, muitas universidades têm contribuído para a construção de
espaços de produção e criação colaborativa e solidária de transformação
emancipatória da sociedade. Em momentos de crise da democracia, como aquele em
que nos encontramos, as universidades têm sabido organizar espaços e
iniciativas de resistência e de afirmação da liberdade de pensamento e de
crítica.
No Brasil, durante o período
pré-eleitoral e a própria campanha, multiplicaram-se, em universidades federais
e estaduais, os cursos, palestras, encontros e manifestações pela democracia,
abrindo espaços de debate que contrastavam com o insólito desaparecimento dos
debates públicos entre candidatos e entre os projetos políticos em presença. Um
grande número de universidades foi alvo, durante a campanha eleitoral, de
intervenções policiais, respaldadas por decisões de membros do poder
judiciário, sob pretexto de que debates sobre a democracia e o fascismo ou
sobre a história contemporânea do Brasil constituiriam formas ilegítimas de
propaganda eleitoral em favor de um candidato ou em prejuízo de outro.
Conferências sobre o fascismo ou cartazes que proclamavam simplesmente “Mais
livros, menos armas” foram assim censurados como podendo prejudicar um dos
candidatos, enquanto as fake news contra o candidato Fernando Haddad
continuavam a proliferar perante a impotência ou inação das autoridades e da
justiça eleitoral.
Uma outra, e
significativa, vertente do ataque às universidades, às escolas e aos
profissionais da educação é o de projetos como o da Escola Sem Partido – um
projeto de supressão da diferença e do rigor crítico em nome de um alegado
combate à “doutrinação” –, ou a chamada, pelo próprio Presidente eleito, à
delação de professores e de alunos alegadamente culpados de praticar essa
“doutrinação”. Assim se abre o caminho para a imposição de versões oficiais de
conteúdos e práticas, suprimindo a memória histórica, criminalizando o
pensamento crítico e a liberdade de ensinar e aprender enquanto pilar de uma
educação que não se confunda com doutrinação, adestramento e promoção do
conformismo.
Criminalizar o pensamento
e promover a delação como uma virtude destrói a possibilidade de educar para a
cidadania, para a democracia e para a solidariedade. A escola seria assim
transformada numa máquina de produção de conformismo, de ignorância, de
preconceito, de medo, e de celebração da delação e do ódio à diferença.
Contra essa transformação, a defesa e promoção
da democracia exige escolas e universidades que formem cidadãos capazes de
exercer as suas faculdades críticas, de produzir e partilhar conhecimento em
todas as áreas, de contribuir para a promoção da igualdade e o reconhecimento
da diferença, de praticar uma cidadania solidária. Por isso é tão importante a
solidariedade e o apoio a todas e todos que lutam por defender, com as suas
tensões e imperfeições, os lugares de pensamento crítico e de educação
democrática que resistem aos projetos autoritários.
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