segunda-feira, 19 de novembro de 2018

OS TEMPOS MUDARAM…


As caravanas de milhares de esfomeados migrantes centroamericanos que actualmete percorrem o México, a caminho dos Estados Unidos (EUA) constituem o mais recente episódio relacionado com a já longa intervenção norteamericana em todo o novo continente, traduzida em décadas de colonialismo económico e “promoção de golpes militares e apoio a ditaduras” sanguinárias, cuja história ainda não acabou porque há sempre novos capítulos a acrescentar.
Os cidadãos que têm os EUA como mira são essencialmente originários de El Salvador, Honduras e Guatemala e fogem à repressão, crime e pobreza que grassa nos seus países.
Utilizando um conhecido slogan publicitário, “a tradição já não é o que era”, conclui-se que as vítimas da miséria deixaram de conformar-se com o seu trágico destino, seguindo a pensamento de que já nada têm a perder. E quando um ser humano ou um povo inteiro sentem que já nada têm a perder, tudo é possível acontecer.
Quem ainda não entendeu que os tempos mudaram é Trump cuja acção vai no sentido de fazer avolumar ainda mais estas avalanches migratórias incontroláveis.
No texto seguinte que transcrevemos da edição do “Expresso” deste sábado, Daniel Oliveira faz uma interessante análise deste pertinente tema.

Uma enorme massa humana começa a chegar à fronteira entre o México e os EUA. Vão juntos para se protegerem de traficantes e gangues. Deviam acordar consciências, mas Trump prefere o medo à inteligência coletiva. Entre os louros da situação económica e o perigo da invasão dos esfaimados, preferiu escolher o ódio para caçar votos. E resultou. Mas vale a pena ir ao começo desta caravana. Eram apenas mil em fuga do desemprego e do crime. Partiram de San Pedro Sula, uma das cidades mais perigosas do país, com mais homicídios por cem mil habitantes no mundo. A notícia espalhou-se e muito mais hondurenhos (85% dos cinco mil) e migrantes de outros países juntaram-se à caravana rumo aos EUA. Que culpa têm os norte-americanos da desgraça alheia? Não vou falar de décadas de colonialismo económico, promoção de golpes militares e apoio a ditaduras. Teria de recuar a 1957, quando Jacobo Arbenz foi destituído por ter posto em causa o monopólio da United Fruit Company na Guatemala. Este espaço não chegaria para a lista de crimes cometidos pelo “farol da democracia” na América Central. Tiremos-lhe dos ombros o pesado fardo da culpa. É passado. Será?
Em 2009, as Honduras tinham como presidente Manuel Zelaya. Vindo da direita, estava bem longe de ser um revolucionário quando chegou à presidência. Era um patriota que queria os mínimos de decência e igualdade na sua miserável pátria. No curto período em que teve o direito de governar, fez grandes investimentos na saúde e na educação e aumentou o salário mínimo. Até que a tentativa de referendar uma alteração da Constituição deu a desculpa para os que compram presidentes e mantêm os hondurenhos na miséria o fazerem cair. Os militares capturaram Zelaya, enfiaram-no num avião e largaram-no, de pijama, num aeroporto da Costa Rica. Ao parlamento, entregaram uma carta de renúncia falsa. Tínhamos voltado aos velhos golpes militares da América Latina. O mundo condenou. Até Obama. Só que os EUA souberam e apoiaram o golpe. E garantiram que Zelaya não voltava. Em “Decisões Difíceis”, Hillary Clinton esclarece como impediu o regresso do presidente eleito, contrariando a Organização de Estados Americanos (OEA) e a ONU: “Nos dias que se seguiram ao golpe, falei com os meus homólogos de todo o hemisfério, inclusive a secretária Patrícia Espinosa, do México, com o objetivo de ‘rapidamente’ organizar eleições que resultariam na irrelevância da questão Zelaya.” Depois disso, a taxa de homicídios aumentou 50%, a repressão política e social é brutal, as instituições colapsaram e a situação do país é calamitosa.
Quanto à democracia? Há um ano, o herdeiro dos golpistas, Juan Orlando Hernández, foi a votos para ser reeleito através de uma fraude eleitoral. A repressão às manifestações de protesto resultou em 31 mortos. A OEA, hoje dominada pela direita, mandou repetir as eleições, mas os Estados Unidos reconheceram a vitória fraudulenta. Como disse Roosevelt sobre Somoza, “é o nosso filho da puta”. Só que este permanente boicote à democracia teve danos colaterais: os milhares que fogem da criminalidade, da repressão e da fome. Quando se dirigem para os EUA não tentam invadir ninguém. Vêm apenas cobrar a fatura a quem, de forma deliberada e continuada, lhes retirou o direito a decidirem o seu próprio destino. E não há muro que possa travar as consequências de décadas de desrespeito pela liberdade dos outros.

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