As caravanas de
milhares de esfomeados migrantes centroamericanos que actualmete percorrem o
México, a caminho dos Estados Unidos (EUA) constituem o mais recente episódio
relacionado com a já longa intervenção norteamericana em todo o novo
continente, traduzida em décadas de colonialismo económico e “promoção de
golpes militares e apoio a ditaduras” sanguinárias, cuja história ainda não
acabou porque há sempre novos capítulos a acrescentar.
Os cidadãos que
têm os EUA como mira são essencialmente originários de El Salvador, Honduras e Guatemala
e fogem à repressão, crime e pobreza que grassa nos seus países.
Utilizando um
conhecido slogan publicitário, “a tradição já não é o que era”, conclui-se que as
vítimas da miséria deixaram de conformar-se com o seu trágico destino, seguindo
a pensamento de que já nada têm a perder. E quando um ser humano ou um povo
inteiro sentem que já nada têm a perder, tudo é possível acontecer.
Quem ainda não
entendeu que os tempos mudaram é Trump cuja acção vai no sentido de fazer
avolumar ainda mais estas avalanches migratórias incontroláveis.
No texto seguinte
que transcrevemos da edição do “Expresso” deste sábado, Daniel Oliveira faz uma interessante análise deste pertinente tema.
Uma
enorme massa humana começa a chegar à fronteira entre o México e os EUA. Vão
juntos para se protegerem de traficantes e gangues. Deviam acordar
consciências, mas Trump prefere o medo à inteligência coletiva. Entre os louros
da situação económica e o perigo da invasão dos esfaimados, preferiu escolher o
ódio para caçar votos. E resultou. Mas vale a pena ir ao começo desta caravana.
Eram apenas mil em fuga do desemprego e do crime. Partiram de San Pedro Sula,
uma das cidades mais perigosas do país, com mais homicídios por cem mil
habitantes no mundo. A notícia espalhou-se e muito mais hondurenhos (85% dos
cinco mil) e migrantes de outros países juntaram-se à caravana rumo aos EUA.
Que culpa têm os norte-americanos da desgraça alheia? Não vou falar de décadas
de colonialismo económico, promoção de golpes militares e apoio a ditaduras.
Teria de recuar a 1957, quando Jacobo Arbenz foi destituído por ter posto em
causa o monopólio da United Fruit Company na Guatemala. Este espaço não
chegaria para a lista de crimes cometidos pelo “farol da democracia” na América
Central. Tiremos-lhe dos ombros o pesado fardo da culpa. É passado. Será?
Em
2009, as Honduras tinham como presidente Manuel Zelaya. Vindo da direita,
estava bem longe de ser um revolucionário quando chegou à presidência. Era um
patriota que queria os mínimos de decência e igualdade na sua miserável pátria.
No curto período em que teve o direito de governar, fez grandes investimentos
na saúde e na educação e aumentou o salário mínimo. Até que a tentativa de
referendar uma alteração da Constituição deu a desculpa para os que compram
presidentes e mantêm os hondurenhos na miséria o fazerem cair. Os militares
capturaram Zelaya, enfiaram-no num avião e largaram-no, de pijama, num
aeroporto da Costa Rica. Ao parlamento, entregaram uma carta de renúncia falsa.
Tínhamos voltado aos velhos golpes militares da América Latina. O mundo
condenou. Até Obama. Só que os EUA souberam e apoiaram o golpe. E garantiram
que Zelaya não voltava. Em “Decisões Difíceis”, Hillary Clinton esclarece como
impediu o regresso do presidente eleito, contrariando a Organização de Estados
Americanos (OEA) e a ONU: “Nos dias que se seguiram ao golpe, falei com os meus
homólogos de todo o hemisfério, inclusive a secretária Patrícia Espinosa, do
México, com o objetivo de ‘rapidamente’ organizar eleições que resultariam na
irrelevância da questão Zelaya.” Depois disso, a taxa de homicídios aumentou
50%, a repressão política e social é brutal, as instituições colapsaram e a
situação do país é calamitosa.
Quanto à democracia? Há um ano, o
herdeiro dos golpistas, Juan Orlando Hernández, foi a votos para ser reeleito
através de uma fraude eleitoral. A repressão às manifestações de protesto
resultou em 31 mortos. A OEA, hoje dominada pela direita, mandou repetir as
eleições, mas os Estados Unidos reconheceram a vitória fraudulenta. Como disse
Roosevelt sobre Somoza, “é o nosso filho da puta”. Só que este permanente boicote
à democracia teve danos colaterais: os milhares que fogem da criminalidade, da
repressão e da fome. Quando se dirigem para os EUA não tentam invadir ninguém.
Vêm apenas cobrar a fatura a quem, de forma deliberada e continuada, lhes
retirou o direito a decidirem o seu próprio destino. E não há muro que possa
travar as consequências de décadas de desrespeito pela liberdade dos outros.
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