A
classe dominante encontrou no futebol um inesgotável filão para desviar as
atenções dos mais pobres relativamente aos seus verdadeiros problemas. Tudo serve
de pretexto para reportagens e comentários televisivos desde que envolvam o “desporto
rei”. É como se o futuro do país estivesse dependente, neste momento, do
destino que vai ter um dirigente de um dos maiores clubes portugueses, suspeito
de ter mandado sovar um grupo de jogadores. De que é que o bem-estar dos
cidadãos depende do futuro daquela ou de outra qualquer personalidade ligada ao
futebol nacional que leve a horas infinitas de ocupação de tempo de antena sem
qualquer conteúdo com um mínimo de utilidade imediata ou futura para os
portugueses?
Enquanto
milhares de trabalhadores “levam a cabo greves e manifestações com o objectivo
de alcançar melhores condições de vida, de salário” e de situações laborais, o
circo mediático controlado por grandes grupos económicos “arreda” das grelhas noticiosas
estas lutas, muitas vezes decisivas para a conquista de alguma justiça social,
mas que acabam por não chegar àqueles que mais as deviam conhecer.
Está a tronar-se quase raro ler-se na comunicação
social escrita um texto que aborda o tema em consideração e, por isso, ainda é
mais recomendável a sua leitura (*).
Mas que raio se passa neste país, onde basta a bola rolar para nada mais
importar?
Todos sabemos da gravidade do assunto que está na génese deste circo mediático
criado em torno de Bruno de Carvalho, mas valerá tantas horas mediáticas? Nesta
semana não se falou de outra coisa. Será culpado, não será culpado, ficará em
preventiva ou não, será que merece, será que não. Aquilo que se pode aferir é o
facto de, enquanto corre o circo mediático em torno de um dirigente da bola, os
trabalhadores continuarem a empobrecer, trabalhando — e eles estão na rua.
Ignorados olimpicamente pelos media, trabalhadores de vários
sectores levam a cabo greves e manifestações com o objectivo de alcançar
melhores condições de vida, de salário e de condições laborais. Desde os
precários da RTP, os funcionários judiciais e os trabalhadores eventuais do Porto
de Setúbal, incluindo até os estudantes, todos têm saído à rua por melhores e
mais condições de vida.
Se o caro leitor ainda não ouviu nada acerca deste assunto é porque ele tem
vindo a ser ignorado pelos meios de comunicação social, que arredaram a luta
dos trabalhadores portugueses das suas grelhas noticiosas.
É da nossa vida que se trata.
Pouco importa
se o presidente da bola fez ou não fez aquilo que dizem ter feito, a justiça
encarregar-se-á de investigar, procurar, acusar ou não e condenar ou não.
Deixemos para a justiça aquilo que é da justiça e não queiramos transformar a
comunicação social numa procuradoria parola e popular. Antes, devemos tomar nas
nossas mãos o futuro a que temos direito e não deixar que sejam outros a
decidir por nós.
No Porto de Setúbal, os trabalhadores erguem-se agora contra uma
forma de exploração altamente reaccionária, onde os patrões impõem um trabalho
à jorna como nos tempos de antigamente. Cada turno que acabam é um despedimento
que acontece, sendo contratados de imediato para o turno que se segue. Assim,
ficam estes trabalhadores impossibilitados de lançar a mão a direitos que um
contrato de trabalho, nomeadamente colectivo, lhe proporcionaria. Como
expressão recentemente celebrizada, é uma questão civilizacional. Se cumprem trabalho
efectivo, o contrato deveria ser efectivo. Mas o que importa é a bola.
Durante esta semana tivemos tribunais parcialmente encerrados, serviços
públicos a funcionar meramente em serviços mínimos, mas pouco se sabe e pouco
se mostra porque não interessa.
O que interessa é transmitir em loop os carros da GNR que levaram
Bruno de Carvalho para o tribunal ou, então, dar voz a um coro de balbuciantes
que, sem pudor, tecem teorias, presunções e até previsões do futuro, como nem a
Maya seria capaz de prever.
Condena-se e depois julga-se. Julga-se e mesmo assim restam dúvidas.
E enquanto os muitos que gritam prisão preventiva para Bruno de Carvalho se
estrebucham pela liberdade de banqueiros que tanto arrecadaram nos bolsos,
assistimos, não como cidadãos, mas como espectadores da nossa própria vida, ao
definhar da democracia.
O povo está na rua e, com câmaras ou sem elas, continuará a estar até
termos o trabalho a que temos direito, a reforma a que temos direito. A vida a
que temos direito.
(*) Fernando Teixeira,
“Público”
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