Se há greves que fazem todo o sentido, a
dos estivadores precários do porto de Setúbal entra de certeza nessa qualificação.
Tão evidente é a justeza da luta daqueles trabalhadores que até a direita tem
dificuldade em arranjar argumentos para estar contra.
A realidade do que se passa é simples e por
demais conhecida. Por isso mesmo, é revoltante para qualquer pessoa de esquerda
ver António Costa assumir a posição de porta-voz da concessionária turca do
porto de Setúbal, contra os trabalhadores portugueses e seus representantes
legais, ainda por cima, usando argumentos que não correspondem à verdade.
A crónica de ontem de Daniel Oliveira, no
Expresso Diário, que apresentamos a seguir constitui como que um desmascarar
das posições que o Primeiro-ministro tomou em relação à luta dos estivadores
precários do porto de Setúbal.
Perante a paralisação dos estivadores
precários do porto de Setúbal e a intervenção policial para ajudar substituir
os grevistas, António Costa foi obrigado a vir em socorro da ministra do Mar. E
fê-lo da pior maneira: repetindo uma mentira veiculada pela entidade empregadora.
Disse: “Estão abertos concursos para a contratação de pessoal efetivo. Tenho
muita dificuldade em compreender porque é que alguns dos eventuais que estão em
greve exigindo ser efetivos não concorrem e respondem a essas ofertas em
emprego para serem efetivos.” E depois dedicou-se a atacar um sindicato que é
“uma condicionante ao bom funcionamento do porto”. Não reservou o mesmo género
de críticas a uma empresa que tem 90% de precários. Se a posição neutral já
seria difícil de defender – porque não estamos perante lados com igual força –,
esta posição foi um murro na barriga.
A mentira é esta: não foi aberto concurso
algum. A empresa contactou trinta trabalhadores para aceitarem integrar os
quadros através de contratos individuais. A tática é antiga: dividir para
reinar. E estes recusaram porque querem ser integrados através de uma
negociação coletiva com os sindicatos que tenha em conta a situação de todos.
Em vez do desenrasque da sua situação particular, para partir a luta destes
estivadores, estes trabalhadores esperam solidariedade entre trabalhadores e
concertação social. Se António Costa tem dificuldade em compreender estes dois
valores é porque não sabe que eles estão na fundação da social-democracia e do
socialismo democrático. Lamentavelmente, o PS não tem a origem sindical e
operária da maioria dos seus congéneres europeus. Se tivesse, a intervenção
policial e estas declarações de Costa teriam levado a reações firmes da
militância. Pelo menos mais audíveis do que as ouvidas sobre a polémica da tourada.
Felizmente, há esperança. O discurso que
se espera de um socialista veio da JS do Porto. Que não só pôs os pontos onde
eles têm de estar como não hesitou em criticar o comportamento do Governo. Não
é raro serem os novos a ensinarem os velhos. E são estes jovens, que cresceram
nas duas décadas de traição da social-democracia, de que a terceira via foi
apenas o mais deprimente dos suicídios, que vão dar a volta a isto. Mesmo que a
velha guarda resista.
Não há qualquer
intransigência do sindicato que era de Lisboa e está a crescer noutros portos,
para substituir sindicatos corruptos que ignoram os direitos dos precários e
são intermediários para o trabalho à jorna. Com esses, é verdade, tem sido
fácil “trabalhar”. O Sindicato dos Estivadores e Atividades Logísticas (SEAL)
fez uma proposta aceitável para os 90 trabalhadores que estão em causa: que
fossem integrados 56 e que os restantes tivessem prioridade na contratação ao
turno (é assim que as pessoas são contratadas no porto de Setúbal – ao turno).
Não era a solução ideal, mas era um compromisso. A concessionária turca, que
desde este fim de semana conta com um porta-voz de luxo, optou pelo truque de
tentar acabar com a greve através da divisão dos trabalhadores.
Todos estamos preocupados com as
exportações e com o que acontece no porto de Setúbal. Note-se, no entanto, que
a Autoeuropa, que é a maior prejudicada, não teve a leviandade de António
Costa. Não tomou partido pela concessionária, que é quem tem de resolver o
problema. Nem me parece que esteja satisfeita com a solução de ir abrindo,
através da PSP, momentos de exceção a uma greve para garantir o embarque da sua
mercadoria. E apenas da sua, o que é de legalidade duvidosa e deve levar a
ministra do Mar e o ministro da Administração Interna a darem explicações ao
Parlamento e ao país. Primeiro, porque a cultura desta empresa alemã não é dada
a este tipo de expedientes, dignos de uma república das bananas. Depois, porque
isto sai demasiado caro. A Autoeuropa quer uma solução negociada, como costuma
encontrar na sua própria casa. Com esta intervenção de Costa a concessionária
turca sente-se mais confortável para esticar a corda e o acordo fica mais
distante. E, no entanto, o que se esperaria de um primeiro-ministro era uma
pressão junto da empresa para resolver o problema. O Governo tem todos os
instrumentos para isso e se o tivesse feito esta greve já tinha acabado.
Preferiu pressionar a parte fraca.
Poderão
dar pouca importância ao sucedido, mas esta intervenção de António Costa é das
mais reveladoras de toda a sua carreira política. Num conflito entre
trabalhadores e uma empresa que emprega 90% dos seus trabalhadores ao dia, o
primeiro-ministro optou por enviar a polícia para garantir a substituição dos
grevistas, violando o direito à greve, e por ser porta-voz de quem não tem
defesa possível, repetindo as suas mentiras sem qualquer pudor. Se houve dia em
que fiquei com a certeza de que o grande objetivo das próximas eleições é
impedir que António Costa tenha a maioria absoluta, esse dia foi na
sexta-feira. Infelizmente, ainda precisa de quem, pela força do voto, o segure
à esquerda. Pelo menos nos mínimos dos mínimos.
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