De cada vez que, a nível internacional, tem
lugar uma reunião cuja finalidade é o desenvolvimento concertado de ações em
prol da emergência climática, ficamos com uma ideia cada vez mais firme de que
nada de importante de lá sai senão a certeza de que as alterações do clima se irão
agravar em crescendo. Os grandes interesses representados pelas principais
potências impedem que qualquer medida efetivamente importante seja tomada e,
principalmente, cumprida. É sempre mais do mesmo e, o pior de tudo, é que as
populações já se vão habituando a essa farsa.
Por cá, e à nossa escala, as coisas não são
muito diferentes. O cidadão menos desatento vai percebendo que, perante
qualquer obra pública de grande envergadura e com previsto impacto ambiental, a
obra tende a avançar, independentemente das consequências àquele nível. Todos
os argumentos são arregimentados menos aqueles que, de facto, tenham em conta a
emergência climática em que vivemos. E a verdade é que sempre se verifica a
possibilidade de alternativas desde que haja vontade política de colocar à
frente os interesses das populações e não os do domínio do poder financeiro.
O exemplo atualmente em discussão em
Portugal tem a ver com o plano para o novo aeroporto que servirá Lisboa, com
avaliações de impacto ambiental “ridículas” e em que poucos acreditam, sem que
isso leve o Governo a tomar a decisão mais correta. João Camargo, o conhecido
investigador em alterações climáticas, assina no “Público” de hoje um interessante
artigo em que toma uma posição muito firme sobre esta temática e cujo conteúdo
deixamos a seguir.
O plano do novo aeroporto
do Montijo não arrancou e já é uma comédia em chamas: avaliações de impacto
ambiental ridículas (ainda alguém acredita nelas?), imposição ao poder local,
riscos graves de inundação, processos em tribunal, pássaros estúpidos, leis
marteladas para aprovar um projecto catastrófico. Seria difícil planear um
projecto para angariar tanta antipatia, um tal compêndio de suspeição,
hipocrisia, incoerência, incompetência e autoritarismo. É um projecto morto à
nascença, mas tanto não pode haver aeroporto no Montijo como não pode haver
aeroporto em Alverca, em Alcochete ou onde quer que seja. Vivemos numa
emergência climática, novos projectos que aumentam dramaticamente as emissões
só podem ter um destino: ser parados. E serão.
A última justificação para
a “imprescindibilidade” de um novo aeroporto no Montijo é que se perdem 400 mil
passageiros por ano, segundo o ministro das Infraestruturas e da Habitação,
Pedro Nuno Santos. Considerando que em 2018 o Aeroporto da Portela recebeu mais
de 30 milhões de passageiros, fica por perceber qual é mesmo o argumento. Dizem
que há 40 anos que deveria ter sido construído um aeroporto em Lisboa.
Acrescentam que se anda há décadas a brincar aos aeroportos – noutra altura
andava-se a tentar construir um Estado Social e um país decente, depois a
resgatar o festim das privatizações e da crise dos bancos e, portanto, não é de
estranhar que tal projecto não tenha sido, e bem, prioritário. O actual governo
pretende montar a derradeira “brincadeira” que é propor uma expansão
aeroportuária que passe dos 30 milhões de passageiros por ano para os 60
milhões de passageiros por ano.
Como há 40 anos devia ter sido
construído um aeroporto, e há 30 também, como há 20 ou há dez teoricamente
também, nada do que tenha acontecido entretanto justificaria cancelar isto,
segundo a elite económica, os argumentistas. O facto de termos de fazer um
corte radical das emissões de gases com efeito de estufa é considerado
facultativo, o que justifica a possibilidade de passarmos de 4,5 a 4,6 milhões
de toneladas de dióxido de carbono emitidas em 2019 pelo Aeroporto de Lisboa
para as nove milhões de toneladas que uma duplicação dos passageiros implicaria
(além das emissões subvalorizadas feitas na troposfera pelos aviões).
O ministro do Ambiente, parece, já
garantiu que os voos do futuro far-se-ão por passarola, tecnologia sem emissões
e em acelerado desenvolvimento, e António Costa disse no lançamento da Capital
Verde que “o novo aeroporto vai produzir dois milhões de toneladas por ano” em
2050. Fora do campo da imaginação à la Júlio Verne destes governantes,
tal nível de emissões só é possível se o Montijo já
estiver debaixo de água nessa altura.
O cumprimento integral das metas das
políticas públicas climáticas portuguesas (tanto o Roteiro para a Neutralidade
de Carbono 2050 como o Plano Nacional de Energia e Clima) não é suficiente para
manter o aumento da temperatura até 2100 abaixo dos 1,5ºC. Projectos como o do
aeroporto (e outros) foram
convenientemente deixados de fora destas contas e agravariam ainda
mais o buraco entre aquilo que teoricamente será feito e aquilo que é
imprescindível cortar em emissões. Contabilidade criativa pode servir para
arremesso político na dívida pública e no défice, mas não serve para a química
atmosférica, que não tem sentido de humor.
Não nos devemos deter apenas em política
futura e na exclusão dos impactos climáticos de qualquer avaliação de um novo
aeroporto. Actualmente, Portugal apoia activamente a indústria aeroportuária e
a sua expansão, com incentivos financeiros, monetários e fiscais. Impostos sobre emissões de bilhetes? Em
Portugal são zero (no Reino Unido são 43€, em Itália 19€, na Alemanha 13€ e em
França 9€). O IVA para os vossos domésticos é de 6% e para os voos
internacionais é de 0%. Toda a Europa “verde” isenta de impostos os
combustíveis dos aviões. Taxa de ruído? Também zero. Um verdadeiro offshore
para a aviação numa paródia nacional em que se diz que há prioridade para a
ferrovia.
Depois de ter percebido que a Autoridade
Nacional da Aviação Civil vai chumbar o Aeroporto do Montijo, o governo
anunciou que vai inventar uma nova lei para permitir a construção na mesma.
Disse ainda que os pássaros não
são estúpidos e “é provável que se adaptem” a um novo aeroporto.
Tantas aberrações parecem de propósito e talvez indiquem que o Governo já está,
de facto, a desistir do projecto. Só falta aparecer o Leslie Nielsen numa
conferência de imprensa a falar das vantagens das pistas subaquáticas para a
Saúde para termos a certeza de que esta é a sequela da comédia Aeroplano.
Há que deixar uma mensagem claríssima, quer esta tragicomédia avance mais
um pouco ou não: não haverá novo aeroporto no Montijo ou em qualquer outro
sítio. O business as usual morreu e as ladainhas requentadas do
desenvolvimento e riqueza associados ao capitalismo fóssil não servem o futuro
de ninguém. Não há economia nem empregos no colapso climático e a nossa
prioridade é salvar as condições que permitam um futuro. Não vamos ficar a
rir-nos enquanto constroem a nossa tragédia colectiva.
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