Os
últimos quatro anos de governo de direita vieram acentuar o apagamento do
factor humano de muitas áreas da sociedade portuguesa, de tal modo que apetece
evocar a célebre expressão “é a economia, estúpido!”, muito usada na campanha
eleitoral de 1992 que opôs Bill Clinton a Bush (pai) nos Estados Unidos. A
saúde terá sido das mais afectadas já que é a vida e o bem-estar das pessoas
que está em causa. Como muito bem é afirmado no texto seguinte que retirámos do
Diário de Coimbra, na saúde “o fator humano tem sido esmagado pelo fator
puramente economicista”. É à volta desta ideia que gira o excelente artigo de Carlos
Cortes (*), o qual merece uma leitura atenta.
Seja
qual for o prisma pelo qual se olhe a Saúde, em todos eles a desumanização tem
assumido uma importância cada vez mais preocupante.
É
inútil mascarar esta realidade. É sentida e conhecida por doentes, utentes e
profissionais.
Dificilmente
existirão dados, mesmo manipulados, que poderão encobrir esta evidência.
Ao
valor do indivíduo e do seu bem-estar tem sido sobreposto o peso dos números
descontextualizados, dos gráficos convenientes e dos clichés sobre a
insustentabilidade económica do sistema de Saúde, em particular do Serviço
Nacional de Saúde.
O
fator humano tem sido esmagado pelo fator puramente economicista. Os ganhos em
Saúde e o investimento na pessoa passaram a valer muito pouco face aos milhões
de euros de cortes irresponsáveis. Mas, visto que os cortes são a face visível
do desinvestimento na qualidade dos cuidados de saúde, estes irão reverter-se,
a breve prazo, em despesa descontrolada devido às consequências sobre os
doentes que deixaram de ir às consultas, que deixaram de comprar a sua
medicação e que tem desvalorizado a sua saúde e a sua qualidade de vida. Este
impacto sentir-se á como uma herança pesada nos próximos anos e os culpados
estarão impunes no silêncio do esquecimento.
Uma
das áreas onde mais se sentiu este tremendo impacto negativo é a da importante
ligação entre o Médico e o Doente.
Discretamente,
a relação Médico-Doente está a ser substituída por instrumentos de medição, por
indicadores e está a ficar condicionada
por pressões externas. Pressões, essas, inadmissíveis até há poucos anos.
A
relação Médico-Doente sempre foi o âmago do ato médico e do tratamento do
doente. O conhecimento do doente e do seu ambiente, a relação de confiança
construída e a ligação humana desenvolvida sempre foram as condições para o
êxito na prestação de cuidados de Saúde. Hoje, o sistema de Saúde está a ser
alicerçado no pressuposto da desvalorização deste conceito.
O
lado humano volatilizou-se e foi suplantado pelas regras do custo-benefício
imediato.
Impõem-se
tempos de consultas desfasados da realidade, escrutina-se toda a intervenção
médica com total desconhecimento dos problemas dos doentes, contabilizam-se
números de consultas, de intervenções cirúrgicas independentemente da sua
dificuldade ou exigência.
Criam-se
barreiras administrativas e burocráticas que afastam os doentes do seu médico.
Despersonalizam-se
recursos humanos deixando de contratar os médicos diretamente e contratando
empresas de recrutamento de médicos incapazes de perceberem a sensibilidade da
área da Saúde.
Em
grande parte, o Médico deixou de ter a autonomia para tratar o seu doente, já
que é obrigado a obedecer a programas informáticos desfuncionantes, a normas
genéricas e é permanentemente pressionado por exigências de qualidade ao menor
preço possível.
A
burocratização e informatização da Saúde, ao invés de ter aprofundado a
inclusão do doente, tornou-se na pior armadilha para o afastar do sistema e dos
profissionais de Saúde.
A
personificação da relação Médico-Doente está a deixar lugar à massificação da
relação Médico-Doente.
Esta
relação – preciosa e essencial na profissão médica e com inegáveis benefícios
para o doente – está a ser destruída subtil e silenciosamente.
Mais
grave do que destruir um sistema público de Saúde, será destruir a sua
componente humanista, reconstrui-la poderá demorar décadas.
(*) Presidente
da Secção Regional do Centro da Ordem dos Médicos
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