terça-feira, 23 de junho de 2015

A DESUMANIZAÇÃO DA SAÚDE


Os últimos quatro anos de governo de direita vieram acentuar o apagamento do factor humano de muitas áreas da sociedade portuguesa, de tal modo que apetece evocar a célebre expressão “é a economia, estúpido!”, muito usada na campanha eleitoral de 1992 que opôs Bill Clinton a Bush (pai) nos Estados Unidos. A saúde terá sido das mais afectadas já que é a vida e o bem-estar das pessoas que está em causa. Como muito bem é afirmado no texto seguinte que retirámos do Diário de Coimbra, na saúde “o fator humano tem sido esmagado pelo fator puramente economicista”. É à volta desta ideia que gira o excelente artigo de Carlos Cortes (*), o qual merece uma leitura atenta.
Seja qual for o prisma pelo qual se olhe a Saúde, em todos eles a desumanização tem assumido uma importância cada vez mais preocupante.
É inútil mascarar esta realidade. É sentida e conhecida por doentes, utentes e profissionais.
Dificilmente existirão dados, mesmo manipulados, que poderão encobrir esta evidência.
Ao valor do indivíduo e do seu bem-estar tem sido sobreposto o peso dos números descontextualizados, dos gráficos convenientes e dos clichés sobre a insustentabilidade económica do sistema de Saúde, em particular do Serviço Nacional de Saúde.
O fator humano tem sido esmagado pelo fator puramente economicista. Os ganhos em Saúde e o investimento na pessoa passaram a valer muito pouco face aos milhões de euros de cortes irresponsáveis. Mas, visto que os cortes são a face visível do desinvestimento na qualidade dos cuidados de saúde, estes irão reverter-se, a breve prazo, em despesa descontrolada devido às consequências sobre os doentes que deixaram de ir às consultas, que deixaram de comprar a sua medicação e que tem desvalorizado a sua saúde e a sua qualidade de vida. Este impacto sentir-se á como uma herança pesada nos próximos anos e os culpados estarão impunes no silêncio do esquecimento.
Uma das áreas onde mais se sentiu este tremendo impacto negativo é a da importante ligação entre o Médico e o Doente.
Discretamente, a relação Médico-Doente está a ser substituída por instrumentos de medição, por indicadores  e está a ficar condicionada por pressões externas. Pressões, essas, inadmissíveis até há poucos anos.
A relação Médico-Doente sempre foi o âmago do ato médico e do tratamento do doente. O conhecimento do doente e do seu ambiente, a relação de confiança construída e a ligação humana desenvolvida sempre foram as condições para o êxito na prestação de cuidados de Saúde. Hoje, o sistema de Saúde está a ser alicerçado no pressuposto da desvalorização deste conceito.
O lado humano volatilizou-se e foi suplantado pelas regras do custo-benefício imediato.
Impõem-se tempos de consultas desfasados da realidade, escrutina-se toda a intervenção médica com total desconhecimento dos problemas dos doentes, contabilizam-se números de consultas, de intervenções cirúrgicas independentemente da sua dificuldade ou exigência.
Criam-se barreiras administrativas e burocráticas que afastam os doentes do seu médico.
Despersonalizam-se recursos humanos deixando de contratar os médicos diretamente e contratando empresas de recrutamento de médicos incapazes de perceberem a sensibilidade da área da Saúde.
Em grande parte, o Médico deixou de ter a autonomia para tratar o seu doente, já que é obrigado a obedecer a programas informáticos desfuncionantes, a normas genéricas e é permanentemente pressionado por exigências de qualidade ao menor preço possível.
A burocratização e informatização da Saúde, ao invés de ter aprofundado a inclusão do doente, tornou-se na pior armadilha para o afastar do sistema e dos profissionais de Saúde.
A personificação da relação Médico-Doente está a deixar lugar à massificação da relação Médico-Doente.
Esta relação – preciosa e essencial na profissão médica e com inegáveis benefícios para o doente – está a ser destruída subtil e silenciosamente.
Mais grave do que destruir um sistema público de Saúde, será destruir a sua componente humanista, reconstrui-la poderá demorar décadas.
(*) Presidente da Secção Regional do Centro da Ordem dos Médicos

Sem comentários:

Enviar um comentário