Todos
os dias do ano são apropriados para denunciarmos injustiças, em especial,
quando elas são exercidas sobre os mais fracos e desprotegidos, de um modo
particular sobre as crianças. Relativamente a elas, não há pecado que lhe possa
ser assacado como aquele, repetido até à exaustão, de que vivemos acima das
nossas possibilidades e, por isso mesmo, temos de sofrer a penitência eterna no
fogo do inferno da pobreza. Isto, para uma imensa maioria enquanto uns, poucos,
sabe-se lá por que obra e graça, estão isentos de tamanho sofrimento.
Numa
altura em que se sabe que nunca circulou tanto dinheiro pelo mundo, a explicação
mais óbvia para os níveis de pobreza e desigualdade existentes no planeta só
pode estar na insensibilidade social do sistema neoliberal sem rosto humano que
tomou conta disto tudo.
De
qualquer maneira, 1 de Junho, Dia Mundial da Criança, acaba por ser
particularmente propício para uma chamada de atenção sobre a fome e a pobreza
que atinge centenas de milhares de crianças e jovens em Portugal. O texto
seguinte (*) é uma bela reflexão sobre
este tema e foi publicado há mais de um mês no Diário de Coimbra.
“O
opulento não sabe o que passa o esfomeado”. Esta simples frase de Montaigne, o
filósofo francês do século XVI parece ter uma gritante actualidade até porque
não é possível tapar o sol com a peneira. Estamos em 2015 e deixou de ser um
murmúrio: há crianças a passar fome em Portugal. Das estatísticas se sabe hoje
que mais de 400 mil crianças estão no patamar da pobreza. Não será difícil imaginar
as repercussões sistémicas, quer nas famílias quer na escola ou na sociedade. Isto
num país onde para não se ser pobre não basta trabalhar.
Um
dos aspectos mais chocantes das histórias de vida de muitos jovens observados
em consultas de psiquiatria que apresentam comportamentos de risco com um
cortejo de transgressões, como consumos de álcool, drogas ou automutilações, é
precisamente o que contam acerca da sua infância. À primeira vista,
acreditar-se-ia que neste período crítico do desenvolvimento seria esperada uma
maior atenção da parte da sociedade na protecção dessas crianças muitas vezes
ditas “problemáticas”. Mas o que usualmente acontece é esta mesma sociedade que
os quer severamente castigados pelos seus eventuais desmandos não se importar
com as famílias “doentes e disfuncionais” do tipo de onde eles passaram a infância!
Quando a ajuda é por demais necessária. Eis a insensibilidade social que
decorre de escolhas onde grassa o egoísmo atroz destes ventos do neo-liberalismo
sem rosto humano. Esta dura realidade coloca logo uma chuva de perguntas sobre
o “quem somos” e o “que queremos”. Dito de outro modo: estamos perante um Portugal
imoral? E será que isso incomoda alguém? Um Estado psicopata?
Personalidades
de quadrantes políticos e ideológicos tão diversos como Adriano Moreira,
Laborinho Lúcio ou Francisco Louçã afirmaram publicamente que a pobreza não tem
que ser uma inevitabilidade, que, aliás, atenta contra a dignidade humana, a
Constituição da República e aos Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas.
A própria Igreja Católica veio reiteradamente sublinhar esta mesma posição pela
voz do Papa Francisco, dos Bispos, da Cáritas e outras instituições. Quando os
portugueses observam que a progressão pelo mérito foi subvertida pelo alpinismo
político de medíocres oportunistas, vulgo chico-espertos ou se confrontam com
os recorrentes desvarios de milhões e milhões da banca e a impunidade dos seus
protagonistas, com o despudor dos negócios do Estado com privados contendo cláusulas
terrivelmente lesivas para todos nós, por “estranhas” ou “secretas”,
hipotecando as gerações vindouras pelas dívidas atoleimadas cometidas por gente
sem escrúpulos, só podemos ficar revoltados com a magnitude da letargia de quem
nos devia valer. Ou será que é o lobo que guarda o rebanho? Presumo que a resposta
seja dolorosa. Não tenhamos dúvidas: a economia e a alta finança apropriaram-se
da política. Como disse um filósofo: “uns milhares de finórios tomaram conta disto”.
Em
remate, e voltando à pobreza infantil. De entre milhares de milhões propalados
para ali e acolá será que não há verbas para as crianças que passam fome em Portugal?
Mas alguém ainda cora de vergonha?
(*) Carlos Braz Teixeira, Prof. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da
Universidade de Coimbra
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