segunda-feira, 1 de junho de 2015

A INSENSIBILIDADE SOCIAL DE UM SISTEMA SEM ROSTO HUMANO


Todos os dias do ano são apropriados para denunciarmos injustiças, em especial, quando elas são exercidas sobre os mais fracos e desprotegidos, de um modo particular sobre as crianças. Relativamente a elas, não há pecado que lhe possa ser assacado como aquele, repetido até à exaustão, de que vivemos acima das nossas possibilidades e, por isso mesmo, temos de sofrer a penitência eterna no fogo do inferno da pobreza. Isto, para uma imensa maioria enquanto uns, poucos, sabe-se lá por que obra e graça, estão isentos de tamanho sofrimento.
Numa altura em que se sabe que nunca circulou tanto dinheiro pelo mundo, a explicação mais óbvia para os níveis de pobreza e desigualdade existentes no planeta só pode estar na insensibilidade social do sistema neoliberal sem rosto humano que tomou conta disto tudo.
De qualquer maneira, 1 de Junho, Dia Mundial da Criança, acaba por ser particularmente propício para uma chamada de atenção sobre a fome e a pobreza que atinge centenas de milhares de crianças e jovens em Portugal. O texto seguinte (*)  é uma bela reflexão sobre este tema e foi publicado há mais de um mês no Diário de Coimbra.
“O opulento não sabe o que passa o esfomeado”. Esta simples frase de Montaigne, o filósofo francês do século XVI parece ter uma gritante actualidade até porque não é possível tapar o sol com a peneira. Estamos em 2015 e deixou de ser um murmúrio: há crianças a passar fome em Portugal. Das estatísticas se sabe hoje que mais de 400 mil crianças estão no patamar da pobreza. Não será difícil imaginar as repercussões sistémicas, quer nas famílias quer na escola ou na sociedade. Isto num país onde para não se ser pobre não basta trabalhar.
Um dos aspectos mais chocantes das histórias de vida de muitos jovens observados em consultas de psiquiatria que apresentam comportamentos de risco com um cortejo de transgressões, como consumos de álcool, drogas ou automutilações, é precisamente o que contam acerca da sua infância. À primeira vista, acreditar-se-ia que neste período crítico do desenvolvimento seria esperada uma maior atenção da parte da sociedade na protecção dessas crianças muitas vezes ditas “problemáticas”. Mas o que usualmente acontece é esta mesma sociedade que os quer severamente castigados pelos seus eventuais desmandos não se importar com as famílias “doentes e disfuncionais” do tipo de onde eles passaram a infância! Quando a ajuda é por demais necessária. Eis a insensibilidade social que decorre de escolhas onde grassa o egoísmo atroz destes ventos do neo-liberalismo sem rosto humano. Esta dura realidade coloca logo uma chuva de perguntas sobre o “quem somos” e o “que queremos”. Dito de outro modo: estamos perante um Portugal imoral? E será que isso incomoda alguém? Um Estado psicopata?
Personalidades de quadrantes políticos e ideológicos tão diversos como Adriano Moreira, Laborinho Lúcio ou Francisco Louçã afirmaram publicamente que a pobreza não tem que ser uma inevitabilidade, que, aliás, atenta contra a dignidade humana, a Constituição da República e aos Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas. A própria Igreja Católica veio reiteradamente sublinhar esta mesma posição pela voz do Papa Francisco, dos Bispos, da Cáritas e outras instituições. Quando os portugueses observam que a progressão pelo mérito foi subvertida pelo alpinismo político de medíocres oportunistas, vulgo chico-espertos ou se confrontam com os recorrentes desvarios de milhões e milhões da banca e a impunidade dos seus protagonistas, com o despudor dos negócios do Estado com privados contendo cláusulas terrivelmente lesivas para todos nós, por “estranhas” ou “secretas”, hipotecando as gerações vindouras pelas dívidas atoleimadas cometidas por gente sem escrúpulos, só podemos ficar revoltados com a magnitude da letargia de quem nos devia valer. Ou será que é o lobo que guarda o rebanho? Presumo que a resposta seja dolorosa. Não tenhamos dúvidas: a economia e a alta finança apropriaram-se da política. Como disse um filósofo: “uns milhares de finórios tomaram conta disto”.
Em remate, e voltando à pobreza infantil. De entre milhares de milhões propalados para ali e acolá será que não há verbas para as crianças que passam fome em Portugal? Mas alguém ainda cora de vergonha?
(*) Carlos Braz Teixeira, Prof. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra  

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