Numa
altura em que está perfeitamente entendido o papel que a Alemanha pretende
desempenhar na Europa, é muito importante a leitura do seguinte texto (*) que
transcrevemos do Público de hoje, com o título “A noite caiu”.
Vi
há dias A Noite Cairá, um documentário que recupera imagens de um filme
feito, logo a seguir à guerra, por Sidney Bernstein e editado por Alfred
Hitchcock, com as primeiras imagens obtidas pelos operadores do Exército inglês
quando da libertação dos primeiros campos de concentração nazis. O filme visava
confrontar os alemães com o insuportável horror dessas desumanas imagens.
Entretanto, as potências aliadas mudaram de orientação. Preferiram recuperar um
clima de confiança para reconstrução do pós-guerra, pelo que o filme nunca foi
mostrado e aquelas imagens foram relegadas aos arquivos, só agora sendo
reveladas ao público. Ultrapassam tudo o que tinha visto sobre a crueldade
humana.
Não
há modo de descrever o horror das imagens que o filme mostra. Nem é possível
adjectivar o choque e repugnância que causam. Os próprios sobreviventes da
libertação dos campos que são entrevistados no documentário não conseguem
conter a emoção que ainda hoje, justificadamente, lhes causa a desgraça com que
se depararam.
Vi
o filme num silêncio mudo e gélido. A capacidade de impiedade humana vai muito
além do que queria pensar, além de tudo o que pudesse imaginar. Holocausto é
realmente a palavra adequada para descrever aquela repugnante chacina.
Diversas
vezes ouvi, ou li, o comentário de que os campos nazis desumanizavam as
vítimas. Quem sai desumanizado das imagens d' A Noite Cairá são
os algozes e as populações vizinhas aos campos, pela indiferença, se não
conivência, com que aceitavam aquele hediondo crime e dele se aproveitavam,
como ali se ilustra. As vítimas, pelo contrário, saem sacralizadas, como
canonizados automaticamente, para usar uma imagem católica.
Que
isto tinha sucedido pela mão de um dos povos que deu à civilização ocidental
algumas das mais sublimes obras do pensamento, da arte e da cultura é difícil
de compreender e dá que pensar. Desde logo que o lobo não está nos outros, está
em nós. Que, como Hanna Arendt compreendeu, a aparentemente mais banal pessoa
pode cometer as maiores barbaridades.
O
único modo de resgatar o intolerável sacrifício das vítimas é o de fazer
prevalecer o humanismo sem discriminações étnicas ou religiosas que, sobretudo
depois da Segunda Guerra, queremos como apanágio dos valores ocidentais.
Quando
na própria Europa renascem os nacionalismos, a xenofobia, o racismo, o
anti-semitismo e surgem discursos de alto para baixo para os “outros”, com a
arrogância de se deter conjunturalmente a força e o poder, quando se manipula
aquela inqualificável carnificina para promover políticas opostas a esses
valores, seria oportuno que a visão daquelas imagens fosse mais difundida,
desde logo junto dos responsáveis políticos.
Alguém
disse que o problema do Holocausto é ter acontecido. Está aí. Como o Gulag, a
Revolução Cultural, o Pol Pot, o Rwanda. Nada pode apagá-los. Não os podemos
esquecer. De igual modo, devemos reconhecer a crueldade gratuita do Estado
Islâmico, não como um resquício da Idade Média, antes como uma contemporaneidade
gritante e inquietante.
(*) Fernando d’Oliveira Neves, Embaixador reformado
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