sexta-feira, 4 de setembro de 2015

A CARNIFICINA NO MEDITERRÂNEO


Talvez menos estranhamente do que possa parecer, a imagem do bebé que morreu afogado no Mediterrâneo juntamente com um irmão e a mãe, quando procuravam fugir à guerra que assola o seu país, a Síria, pode ser comparável, pelo impacto que está a ter, à reportagem que correu mundo aquando do massacre do cemitério de Santa Cruz em Timor-Leste. Como sabemos, aquele trágico acontecimento acabou por revelar, à escala planetária, o que na realidade se passava na antiga colónia portuguesa da Oceania, conduzindo rapidamente à solução do problema, muito por pressão da opinião pública internacional.
É claro que a actual situação que tem lugar no Mediterrâneo passa-se a uma escala maior mas a comoção gerada pela imagem do corpo do pequeno Aylan acabado de ser expelido pelo mar para uma praia turca, talvez tenha o condão de obrigar os dirigentes europeus, com bastas culpas na eclosão das guerras que actualmente lavram no Norte de África e no Médio Oriente, a acordar para a urgência de acabar de uma vez por todas com a carnificina que está a ter lugar aqui mesmo às portas da Europa.
Muitos textos têm sido produzidos nestes últimos dias tendo como pano de fundo a imagem do corpo inerte do bebé sírio. Entre os que lemos, achámos aquele que reproduzimos a seguir (*) o mais sentido de todos.
Olho para a imagem daquele bebé e digo peremptório que poderia ser meu filho, aliás é mesmo. Nele tudo me é tão próximo. Os sapatos, penso que a minha filha mais nova tem uns iguais, as calças, o formato da cabeça,… a maneira como está deitado, como que a dormir – mais uma vez, a minha filha dorme assim, coloca os braços nesta posição e afunda a cabeça no travesseiro – numa imagem que tem tudo para parecer serena. E é, na verdade, terrivelmente serena. Nunca vou esquecer esta imagem.
Olho para os comboios de Budapeste cheios de gente desesperada, marcada como se fosse diferente, que nasceu do lado “errado” do mundo, cheia de vida e sem esperança, a correr freneticamente à procura de um oásis de paz e de esperança. Leio que são interrompidos na sua viagem para a Alemanha e para a Áustria para serem levados a campos desenhados para pessoas “diferentes” como eles. Só os iguais seguem a sua vida a caminho de casa, e de um destino que para os outros seria uma oportunidade de sobrevivência. Imagino outros comboios, noutros tempos, que em sentido inverso traziam gente considerada “diferente” para sítios sem esperança, sem vida e onde o destino era a morte.
Olho para os dirigentes Europeus e não vejo urgência. Quando estava em causa o dinheiro as reuniões eram marcadas em menos de 14 horas, mas neste caso estando em causa vidas a urgência é relativa e mede-se em semanas. Ouço as suas palavras e pasmo de vergonha. Estamos perante uma “praga” de gente diferente que não é problema nosso, mas antes da Alemanha. Ouço e leio isto de pessoas que dirigem países e não têm a mínima vergonha, nem sobressalto humano e cívico, de o dizerem alto e em público.
Não deixa de ser curioso ouvir a chanceler alemã, com toda a razão, a apelar a uma resposta coordenada da Europa, unida em torno de valores superiores, depois da campanha de desunião e desinteresse que promoveu para o problema grego. Agora percebe as consequências de tão mesquinha e irreflectida actuação. A Europa escolheu a autodestruição e deu voz aos nacionalismos mais primários. Agora com a crise dos refugiados pura e simplesmente não tem resposta, porque não exista como UNIÃO.
Não tenho nenhuma esperança que o bebé, que podia ser meu filho, os comboios de Budapeste ou a vergonha das declarações de certos líderes europeus alterem seja lá o que for. O mundo está numa encruzilhada terrível. Desapareceram os valores e tudo é mais importante do que as pessoas, os seus sonhos e as suas vidas. A prova é que na Europa, antes uma esperança de um mundo melhor, se levantam muros, se acicatam fantasmas e se adiam respostas. Não é importante, pois não tem a ver, aparentemente, com dinheiro. Lamento que tenhamos, de novo, chegado aqui.
(*) Norberto Pires, Professor da FCT da UC, Diário as beiras

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