Talvez
menos estranhamente do que possa parecer, a imagem do bebé que morreu afogado
no Mediterrâneo juntamente com um irmão e a mãe, quando procuravam fugir à
guerra que assola o seu país, a Síria, pode ser comparável, pelo impacto que
está a ter, à reportagem que correu mundo aquando do massacre do cemitério de
Santa Cruz em Timor-Leste. Como sabemos, aquele trágico acontecimento acabou
por revelar, à escala planetária, o que na realidade se passava na antiga
colónia portuguesa da Oceania, conduzindo rapidamente à solução do problema,
muito por pressão da opinião pública internacional.
É
claro que a actual situação que tem lugar no Mediterrâneo passa-se a uma escala
maior mas a comoção gerada pela imagem do corpo do pequeno Aylan acabado de ser
expelido pelo mar para uma praia turca, talvez tenha o condão de obrigar os
dirigentes europeus, com bastas culpas na eclosão das guerras que actualmente
lavram no Norte de África e no Médio Oriente, a acordar para a urgência de
acabar de uma vez por todas com a carnificina que está a ter lugar aqui mesmo
às portas da Europa.
Muitos
textos têm sido produzidos nestes últimos dias tendo como pano de fundo a imagem
do corpo inerte do bebé sírio. Entre os que lemos, achámos aquele que
reproduzimos a seguir (*) o mais sentido de todos.
Olho
para a imagem daquele bebé e digo peremptório que poderia ser meu filho, aliás
é mesmo. Nele tudo me é tão próximo. Os sapatos, penso que a minha filha mais
nova tem uns iguais, as calças, o formato da cabeça,… a maneira como está
deitado, como que a dormir – mais uma vez, a minha filha dorme assim, coloca os
braços nesta posição e afunda a cabeça no travesseiro – numa imagem que tem
tudo para parecer serena. E é, na verdade, terrivelmente serena. Nunca vou
esquecer esta imagem.
Olho
para os comboios de Budapeste cheios de gente desesperada, marcada como se
fosse diferente, que nasceu do lado “errado” do mundo, cheia de vida e sem
esperança, a correr freneticamente à procura de um oásis de paz e de esperança.
Leio que são interrompidos na sua viagem para a Alemanha e para a Áustria para
serem levados a campos desenhados para pessoas “diferentes” como eles. Só os
iguais seguem a sua vida a caminho de casa, e de um destino que para os outros
seria uma oportunidade de sobrevivência. Imagino outros comboios, noutros
tempos, que em sentido inverso traziam gente considerada “diferente” para
sítios sem esperança, sem vida e onde o destino era a morte.
Olho
para os dirigentes Europeus e não vejo urgência. Quando estava em causa o
dinheiro as reuniões eram marcadas em menos de 14 horas, mas neste caso estando
em causa vidas a urgência é relativa e mede-se em semanas. Ouço as suas
palavras e pasmo de vergonha. Estamos perante uma “praga” de gente diferente
que não é problema nosso, mas antes da Alemanha. Ouço e leio isto de pessoas
que dirigem países e não têm a mínima vergonha, nem sobressalto humano e
cívico, de o dizerem alto e em público.
Não
deixa de ser curioso ouvir a chanceler alemã, com toda a razão, a apelar a uma
resposta coordenada da Europa, unida em torno de valores superiores, depois da
campanha de desunião e desinteresse que promoveu para o problema grego. Agora
percebe as consequências de tão mesquinha e irreflectida actuação. A Europa
escolheu a autodestruição e deu voz aos nacionalismos mais primários. Agora com
a crise dos refugiados pura e simplesmente não tem resposta, porque não exista
como UNIÃO.
Não
tenho nenhuma esperança que o bebé, que podia ser meu filho, os comboios de
Budapeste ou a vergonha das declarações de certos líderes europeus alterem seja
lá o que for. O mundo está numa encruzilhada terrível. Desapareceram os valores
e tudo é mais importante do que as pessoas, os seus sonhos e as suas vidas. A
prova é que na Europa, antes uma esperança de um mundo melhor, se levantam
muros, se acicatam fantasmas e se adiam respostas. Não é importante, pois não
tem a ver, aparentemente, com dinheiro. Lamento que tenhamos, de novo, chegado
aqui.
(*) Norberto
Pires, Professor da FCT da UC, Diário as beiras
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