O
texto que Pacheco Pereira assina no Público de hoje, com o título Dói-me Portugal, não é mais que um novo
alerta no sentido de desmontar as mentiras propagandeadas pelo Governo e que,
estranhamente estão a atingir os seus objectivos, a acreditarmos nas sondagens
vindas a público. O povo português pode estar a deixar-se levar pelos cantos de
sereia da coligação de direita, e quando os votos estiverem contados, é como um
cheque em branco passado a Passos/Portas para repetirem, de forma agravada, o
rol de malfeitorias com que nos presentearam nos últimos quatro anos.
Dada
a extensão do artigo de Pacheco Pereira, decidimos transpor para aqui o excerto
do que considerámos mais importante.
O
tema das “duas Espanhas” é muito antigo e não é alheio também ao pensamento
português contemporâneo desde o século XIX. A ideia de que há “dois Portugais”
também por cá circulou, mas sem a dramaticidade e a fronteira talhada à faca,
com que existiu em Espanha. Houve sempre por cá mais mistura, mesmo nos
momentos em que “um Portugal” defrontou o “outro”, nas lutas liberais, na
República e na longa ditadura que preencheu metade do século XX português. A
essa mistura Salazar chamava a “brandura dos nossos costumes”, uma enorme
mentira em que os poderosos desejam acreditar e nem ele acreditava. Também ele
era capaz de, com o seu enorme cinismo, agradecer aos portugueses terem sido
tão “pacíficos” durante a crise.
Hoje,
“dois Portugais” existem e vão a eleições. Um está à vista todos os dias, outro
tornou-se invisível, mas está cá. Como é que é possível ele ter desaparecido de
modo tão conveniente neste ano eleitoral? É conspiração dos media, é censura
induzida, é habilidade de um dos “Portugais”, é apatia, resignação do outro
“Portugal”, é incapacidade do sistema político representar ambos, ou só um, é o
efeito daquilo que os marxistas chamavam “ideologia dominante”`? É, porque já
não há dois, mas apenas um só, e este é o Portugal feliz, redimido dos seus
vícios passados, empreendedor, cheio de esperança no futuro, deixando a “crise”
para trás, virado para o “Portugal para a frente”? É tudo junto, menos a última
razão.
Um
dos “Portugais” está de facto invisível nestas eleições. Quem devia falar por
ele, não fala e quem fala não é ouvido. Criou-se uma barreira de silêncio onde
apenas se ouve a propaganda. Vejam-se as miraculosas estatísticas. Começa
porque há as estatísticas de primeira e as de segunda, as que valem tudo e as
que não valem nada. As “económicas” são de primeira, as “sociais” são de
segunda. Das primeiras fala-se, as segundas ocultam-se.
As
estatísticas “da recuperação económica”, escolhidas a dedo e trabalhadas a
dedo, são comparadas com os anos que mais convém, umas vezes 2000, outras 2008,
outras 2010, outras 2011, outras 2012, outras 2013, etc.. Todas a subir, pouco
mas a subir, com “tendência” para subir. Os “do contra” ainda dizem que são tão
milimétricas essas subidas e tão condicionadas pelo bater no fundo, tão longe
do que seria necessário, tão dependentes de factores externos, que, ao mais
pequenão abanão, o castelo de cartas ruirá. Como, para não ir mais longe, se vê
com a venda do Novo Banco, o “bom”. (Embora suspeite que mesmo a pior das
vendas vai ser apresentada como um excelente resultado, comparada com qualquer
hipotética operação mais ruinosa, que “poderia ter acontecido”, mas nunca
existiu. É uma das técnicas habituais apresentar sempre o mal como o mal
menor.)
Quem
é que quer saber, destes pequenos incidentes? Até às eleições servem bem, no
dia seguinte, se os seus criativos autores ganharem, voltam a ler com toda a
atenção os relatórios do FMI para justificar a continuação da austeridade.
Ver-se-á como o défice vai subir, vai-se ver como as coisas são piores do que
se apresentou neste ano eleitoral, mas já é passado, não conta.
Há
mais de um milhão de desempregados, “desencorajados”, desempregados de longa
duração que desapareceram das estatísticas, falsos estagiários, e pessoas que
só não estão nas listas do desemprego porque emigraram. Porque queriam? Não.
Porque não tinham alternativa e ainda faziam parte daqueles que podiam emigrar.
Se estão felizes é por mérito da Suíça, da Grã-Bretanha, da Alemanha, da França
e das competências e conhecimentos que ganharam em Portugal, imperfeitos que
fossem, antes de 2008. O Portugal que lhe deu essas competências também já está
a encolher, a acabar. Estamos a falar de várias centenas de milhares de
pessoas. É muito português.
Voltemos
aos desempregados que, ó céus!, também não deixaram de existir. São muitas
centenas de milhares de pessoas, à volta de um milhão se somarmos, como devemos
somar, várias parcelas de pessoas que não tem emprego. Não é sequer emprego sem
direitos, é que não tem emprego. Ponto. Por muita imaginação que se possa ter,
é suposto que não estejam felizes com a sua vida. Nem eles, nem as suas
famílias. É muito português.
Depois,
mais um número que se sobrepõe aos outros, uma em cada cinco pessoas é pobre,
dois milhões de portugueses. Onde estão eles que não se vêem? Depois de uma overdose pontual de miséria nos anos
mais agudos da crise, despareceram as pessoas que vivem mal de Portugal. Não
são boa televisão a não ser como “casos humanos” extremos – a idosa sem pleno
uso das suas faculdades mentais que vive imersa na sujidade e na miséria mais
extrema numa casa sem vidros, nem água, nem luz – e não é disso que estou a
falar. Estou a falar da pobreza que é estrutural, da que recuou dez anos para
trás, mas que, neste recuo enorme em termos sociais, perdeu qualquer esperança,
aquela que ainda podiam ter no início da década de 2000.
E
aqueles a quem cortaram a magra pensão na velhice e a reforma com que pensavam
viver os últimos anos, também estão felizes, a aplaudir o PAF? E aqueles que
não eram pobres ou tinham deixado de ser pobres depois do 25 de Abril e que
agora estão a escorregar para esse “estado” de que já não vão sair até
morrerem? Estão felizes e contentes, perdido o emprego, a pequena empresa, o
carro, a casa? Sim, as estatísticas de segunda, as sociais, revelam as
penhoras, as devoluções, as humilhações, o esconder de uma vida sem esperança,
ou seja desesperança. É muito português.
O
discurso oficial, o do “outro” Portugal, diz que tudo isto é “miserabilismo”.
Diz-nos que apenas o crescimento da “economia”, daquilo que eles chamam “economia”,
pode resolver as malditas estatísticas “sociais”. Outra conveniente ilusão,
porque, a não haver mecanismos de distribuição, a não haver equilíbrio nas
relações laborais, a não haver reforço dos mecanismos sociais do estado – tudo
profundamente afectado pela parte do programa da troika que eles cumpriram com
mais vigor e rapidez – o “crescimento” de que falam tem apenas um efeito:
agravar as desigualdades sociais. Como se vê.
No
grosso das notícias, ministros e secretários de estado pavoneiam-se com grupos
de empresários em posição de vénia, por feiras, colóquios dos jornais
económicos, encontros liofilizados para que não haja o mínimo risco e, quando
abrem a boca, é apenas para fazer propaganda eleitoral, a mais enganadora da
qual se faz falando do “estado” redentor do país que agora já “pode mudar”.
Eles falam do lado do poder, do poder que aparece nas listas dos jornais
económicos, os novos “donos disto tudo”, chineses, angolanos, profissionais das
“jotas” alcandorados a governantes, advogados de negócios e facilitadores,
gestores, empresários de sucesso, a nova elite que deve envergonhar a mais
velha gente do dinheiro, que o fez de outra maneira. O “outro” Portugal, o que
é tão visível que até cega, com todas as cores, luzes a laser, aplausos de casting, feérico e feliz.
Não é este o meu Portugal.
Não lhes tenho respeito. Uns fazem por si, outros fazem pelos outros.
Conheço-os bem de mais. Não gostam dos de “baixo”. Acham que eles são feios,
porcos e maus. Querem receber sem trabalhar. Querem viver à custa dos
outros, deles. Se estão pobres é porque a culpa é sua. Se estão desempregados é
porque não sabem trabalhar. Se se lamentam da sua sorte, são piegas. Deviam
amochar disciplinadamente para serem bons portugueses. Não. “Há-de gelar-te o
coração”.
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