A
historiadora Raquel Varela brinda-nos hoje no Público com uma excelente
reflexão sobre a problemática dos refugiados. Para alguns leitores o texto pode
parecer muito longo e, por isso, acabámos por seleccionar as partes mais
importantes, sem perturbar o essencial da mensagem.
A
família [do pequeno Aylan] vinha, como todos os refugiados, fugidos à morte e à
pilhagem – os terroristas, como disse António Guterres, à frente do ACNUR,
“chegam de avião, não num barco de borracha”. A Síria, uma sociedade complexa e
evoluída, com força de trabalho qualificada, não existe já como Estado. São
escombros, nada mais.
Um
sector de esquerda que vê o mundo a preto e branco – já no tempo da Guerra Fria
se limitava a ver o mundo pró-Moscovo ou pró-EUA, esquecendo-se de que há
muitos projetos alternativos progressistaa a ditaduras distintas –, tem
defendido o apoio a Assad. É incompreensível. Na região, depois de aniquilada,
sem ajuda ocidental, a pequena resistência síria árabe revolucionária, sobraram
dois "senhores da guerra", apoiados em tribos distintas de mercenários
– Bashar Al-Assad e, do outro lado, o Estado Islâmico. São ditadores,
distintos, mas ditadores – é irrelevante, para quem defende a igualdade e a
liberdade, quem os apoia. O único vestígio de forças progressistas que podemos
hoje apoiar são os curdos do PKK, uma organização marxista revolucionária, de
uma invulgar igualdade e justiça nas suas fileiras, que derrotou o EI em
Kobani, e que acabou de ter uma expressão eleitoral maciça na Turquia, o HDP,
aliança de curdos e liberais de esquerda, com 12% de votos e 80 lugares no
Parlamento. A Turquia, aliada da NATO, com o silêncio ocidental, tem
aproveitado para... bombardear os curdos do PKK.
(…)
Maçães,
secretário de Estado dos Assuntos Europeus, disse que a partilha da foto era um
acto “narcisista”. É natural, Maçães faz parte da família política de
dirigentes europeus que há duas décadas defende que as guerras são
“humanitárias”. A inversão de valores entre quem governa a Europa é o padrão.
Mas ser comum não significa ser normal. O apoio à monocultura, a gestão de
excedentes alimentares da PAC que despejam a preços baixíssimos comida em
África arrasando a agricultura local, a paralisia perante a política externa de
guerra norte-americana (a cimeira dos Açores anunciou, em 2003, o troar das bombas),
a complacência com os ditadores africanos (quantas vezes foi Kadhafi recebido
com todas as honras por chefes de Estado na Europa?), a recusa em ajudar as
tropas de resistência porque têm um carácter revolucionário; o apoio inominável
à Arábia Saudita, onde estes teocratas fascistas são gerados, a simplicidade
com que os superavits primários das ditadura chinesa, angolana ou da Guiné
Equatorial, conseguidas com exploração de trabalho miserável e forçado, entram
nos nossos países como “investimento”, isto é, venda de bens públicos para
remunerar a banca privada falida.
Desde
2008 cresceu exponencialmente o número de refugiados e deslocados – são hoje 52
milhões, a maioria de zonas ricas em matérias-primas. À Europa chega apenas a
ponta do icebergue, que são os que têm capacidade de pagar a passadores
ilegais.
Em
Maio de 2015 estive numa conferência na Universidade Católica de Lovaina. Ao
meu lado Xavier Declercq, um dos responsáveis da Oxfam da Bélgica, uma das
maiores ONG mundiais, apresentou o relatório da Oxfam, À Égalité, 153 páginas. Cito de memória
uma das histórias que gelaram a assistência: o FMI exigiu a destruição de stocks alimentares no Mali que eram
usados quando havia quedas da produção agrícola para evitar a fome – sem stocks sobem os preços dos
alimentos e os lucros, sobe também o número de africanos a atravessar o
Mediterrâneo para fugir à inanição. Aprendemos algo no Mali há 30 anos? Não,
porque na forma não é muito diferente quando se destroem países inteiros para
remunerar acionistas daquela que é hoje a maior indústria do mundo – o complexo
militar industrial norte-americano, responsável por metade da produção da GE ou
da Boeing, por exemplo, ou de quando o FMI vem hoje a Portugal exigir cortes
nos profissionais de saúde – ficar sem médicos é destruir riqueza para subir
lucros, neste caso lucros na remuneração da dívida pública pela destruição do
Estado social. Seja na venda de alimentos, seja na remuneração da dívida
pública, seja na produção de armas, o modo de acumulação actual está em
declínio profundo, declínio que começa a assemelhar-se ao longo declínio do
modo de produção feudal, marcado pela anarquia e pelas guerras.
Não
tem fundamento o temor das consequências da ajuda aos refugiados. Um refugiado
não fala a língua do país de acolhimento, não é, portanto, força de trabalho
que irá competir rebaixando os salários dos que estão a trabalhar; é alguém que
está limitado a bens de consumo essenciais num período transitório. Portanto,
impulsiona o consumo – e a colecta de impostos sobre esses bens – e ainda toda
a estrutura económica de acolhimento.
Mas
a economia pura não existe, existe a economia política. Temos uma dívida moral
para com estes povos. E os dirigentes dos países da NATO, americanos e
europeus, que ordenaram a guerra no Iraque, orquestraram a intervenção na Líbia
que desbaratou a “primavera árabe”, esses mesmos que nos impõem a sua
‘austeridade’, têm de assumir responsabilidades pela calamidade que ajudaram a
provocar.
Temos a possibilidade de
olhar esta crise como uma forma de construir uma política verdadeiramente
internacionalista que coloque no seu eixo a produção de bens e riqueza para as
necessidades mundiais, o direito dos povos a disporem de si próprios e dos seus
recursos, o fim da pressão migratória baseada nos que fogem da fome e nos que
anseiam por trabalho (barato, “competitivo”). Numa palavra, o direito a partir
e também o direito a ficar e ser felizes onde estamos.
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