O
estudo promovido pela Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) sobre as desigualdades
em Portugal teve o condão de chamar a atenção para esta calamidade que afecta o
nosso país. Infelizmente o debate não tem atingido o patamar que a situação requer
mas vamos assistindo a algumas tomadas de posição, em especial, na opinião
publicada.
As
conclusões do estudo em consideração, não trazem novidade nenhuma relativamente
a outros já trazidos à praça pública como por exemplo através da Intersindical,
apenas confirmando muito do que já se sabia. Com a vantagem de a FFMS não ter
qualquer ligação à “esquerda radical”.
No
texto seguinte, que transcrevemos do Público da última terça-feira, o autor (*)
faz uma abordagem muito interessante sobre o tema das desigualdades em Portugal
pelo que se recomenda vivamente a sua leitura e uma profunda reflexão.
1. Portugal continua a ser um
dos países mais desiguais da Europa. E essa desigualdade, quando medida antes
das transferências sociais, subiu nas últimas décadas. Subiu, mesmo nos tempos
recentes de crescimento económico reduzido, negativo ou de estagnação. Pergunta
simples: se o aumento das desigualdades não resultou da apropriação dos ganhos
do crescimento (fracos ou nulos) no topo da escala de rendimentos, qual foi a
sua origem? Resposta também simples: resultou do esmagamento dos rendimentos no
meio e na base da escala dos rendimentos. Por outras palavras, resultou de uma
redistribuição, só que a favor de quem já tinha mais. Nova pergunta: por que
razão sem crescimento faz sentido uma redistribuição a favor dos mais ricos
mas, segundo se lê por aí, já não faz sentido o contrário, ou seja, uma
redistribuição em favor dos menos ricos?
2. A tese de que precisamos de
crescer antes de redistribuir, essa sim, não faz qualquer sentido. Primeiro,
porque, como vimos, as variações na desigualdade dependem muito mais de
variações na distribuição dos rendimentos, as quais, por sua vez, dependem
sobretudo de escolhas políticas, do que de variações no crescimento. Por isso,
nada nos garante que com mais crescimento haverá mais redistribuição: veja-se o
que tem acontecido nos EUA. E, segundo, porque a redução da desigualdade é ela
própria um mecanismo potenciador do crescimento. Ao contrário da austeridade,
que não promove o crescimento económico mas garante o aumento das desigualdades
sociais, políticas de igualdade poderiam ser não só mais justas mas também mais
eficazes na promoção daquele crescimento.
3. Analisando a evolução da
desigualdade em Portugal, verifica-se que esta tem sempre crescido quando
medida antes dos efeitos redistributivos das políticas. Porém, se considerarmos
aqueles efeitos, a desigualdade tem variado: em regra, diminui quando a
esquerda está no poder, aumenta quando a direita governa. As políticas contam,
fazem a diferença. Há, no entanto, limites às políticas públicas de
redistribuição, sobretudo porque, quando a desigualdade é maior, e portanto
maiores são as pressões para o aumento da despesa pública, mais difícil é
também o aumento da receita. O problema deve pois ser enfrentado antes, no plano
das regras económicas da distribuição, evitando o crescimento primário das
desigualdades e a maior necessidade de redistribuição através do sistema
fiscal. Por exemplo, reforçando o papel da negociação coletiva ou eliminando as
formas mais abusivas e generalizadas de precarização do emprego.
4. A redução das desigualdades
não deve ser confundida com a redução da pobreza. Sendo esta uma prioridade,
convém não esquecer que a desigualdade, por si só, quando excessiva, mina
gravemente a coesão social. Por isso é legítimo e desejável desincentivar o
enriquecimento sem limites. Não há razões sociais, económicas ou morais que
justifiquem o crescimento exponencial dos rendimentos individuais sem um
correspondente aumento da progressividade dos impostos sobre esses rendimentos,
ou de outras medidas que desincentivem tal crescimento para além de limites
aceitáveis. Em primeiro lugar, porque não há sucesso individual que não
beneficie dos recursos sociais que ampliam os efeitos do mérito individual.
Depois, porque o incentivo economicamente desejável ao investimento é
contrariado quando não há limites à maximização do rendimento no curto prazo. E
não se diga que assim se compromete, necessariamente, o investimento e o
crescimento: os períodos recentes de maior crescimento, nos EUA como na Europa,
foram também os anos de maior progressividade dos impostos.
5. A esquerda só é esquerda
quando tem propostas para combater a desigualdade. E, numa perspetiva
social-democrata, estas podem ser reduzidas com eficácia no âmbito de uma
economia de mercado dinâmica, como nos mostra a história recente, embora hoje
as dificuldades sejam maiores em consequência de um quadro europeu muito
adverso. Para isso, é indispensável alinhar em permanência a ação política com
o objetivo de reduzir as desigualdades. A este propósito, recordo a proposta,
mil vezes repetida, de Robert Reich, nos tempos em que integrava o primeiro
Governo de Bill Clinton: avaliar, sempre, o impacto das políticas na
desigualdade. Ora aí está uma boa sugestão para uma boa governação, em
particular para uma boa governação socialista.
6. Num país tão desigual como
Portugal faltam debates sobre estes problemas. Contrariando esta lacuna, a
primeira Conferência Socialista, realizada em Coimbra no passado fim de semana
pelo PS, elegeu a desigualdade como tema central, abrindo uma discussão em que
participaram académicos, governantes e militantes dos diferentes partidos da
esquerda. Faz falta alargar estes debates nos partidos mas também entre
parceiros e movimentos sociais, em geral. E faz falta consensualizar a ideia de
que, tal como hoje não se dispensa a avaliação do impacto orçamental das
políticas, seja igualmente imperativa, para todos os governos, a regra de ouro
que atrás se sugeriu: avaliar, sempre, o impacto das políticas na desigualdade.
Conhecêssemos nós esses impactos quando foram definidas as políticas de
austeridade do Governo de Passos Coelho e, provavelmente, outra teria sido a
oposição à sua concretização.
(*) Rui Pena Pires, sociólogo, professor no
ISCTE-IUL
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