Não
há dúvida de que a direita está órfã do poder e isso é evidente desde há quase
um ano, quando, não tendo maioria nas eleições de Outubro, viu a esquerdas
unirem-se para construírem uma maioria que desse apoio a um Governo da
responsabilidade do PS, que revertesse as políticas de austeridade levadas a
cabo pela anterior coligação PSD/CDS. A direita foi apanhada desprevenida
porque, em democracia, nunca antes tinha sido possível em Portugal, um governo
ancorado à esquerda. A partir daí, deu-se início a uma guerra sem quartel
contra a nova maioria, em que tudo passou a valer desde que proporcionasse um
desgaste rápido do novo poder. A propósito de tudo e de nada, dia sim dia sim era
vaticinado o colapso a “geringonça”. Só que, o sentido de responsabilidade e o
esforço de todos aqueles que a ergueram, têm conseguido mantê-la de pé para
cumprirem os objectivos a que se propuseram ainda que dentro do espartilho imposto
pelas “regras” da UE.
Não
é, pois, de admirar que, ao pretender-se acabar com o hábito de as famílias
ricas (quase) não pagarem impostos, para se gerarem verbas que apoiem os mais
desfavorecidos, a direita faça o alarido que por aí se ouve, usando as mentiras
mais descabeladas pois é esse o papel que lhes está destinado na defesa de
ricos e poderosos.
O
texto seguinte, cuja leitura se recomenda vivamente, é um artigo de opinião com
a qualidade a que José Vítor Malheiros nos habituou e onde se apoia vivamente a
moralização do domínio fiscal que o actual governo pretende iniciar. O sublinhado
é da nossa responsabilidade.
Para
assegurar um nível mínimo de coesão numa sociedade, é preciso garantir um
mínimo de equidade, um mínimo de regras comuns. Regras que devem abranger todos
os cidadãos sem excepção, seja qual for a sua extracção social, nível
económico, educação, actividade profissional, local de residência, antecedentes
familiares, saúde, cor da pele, género, orientação sexual, ideologia política
ou religião.
Sem
essa equidade mínima não existe o mínimo de confiança mútua, de respeito pelos
outros e de espírito de colaboração que permitem a coexistência e o
envolvimento da comunidade em empreendimentos colectivos que promovam o
desenvolvimento e o bem-estar de todos.
Para
garantir a cooperação de todos, tem de existir uma mutualização de
responsabilidades e benefícios, divididos de forma justa, proporcional e
transparente.
Em
teoria, as coisas funcionam assim nas sociedades democráticas em geral e em
Portugal em particular. Mas apenas em teoria. Para além das enormes
desigualdades existentes em todos os domínios, que decorrem de situações de
partida muito desequilibradas, como o nível socio-económico das famílias (que,
num extremo, condena os seus descendentes à pobreza durante gerações e, no
outro, lhes garante gerações de privilégios) existem áreas onde a desigualdade
e o privilégio de classe é a regra, com as consequências negativas que são de
esperar em termos de confiança interpessoal e de confiança nas instituições:
essas áreas são a justiça e a fiscalidade.
Digam
o que disserem os políticos em campanha e sejam quais forem as promessas e as
intenções dos Governos, todos sentimos e sabemos que existe uma justiça para
ricos e uma justiça para pobres, da mesma forma que existem regimes fiscais
diferentes para ricos e empregados. No domínio da justiça, é evidente que
aqueles que possuem meios para contratar bons advogados que exploram todos os
buracos das leis e recorrem a todas as manobras dilatórias raramente são
condenados e, quando o são, são objecto de sanções simbólicas. No domínio do
fisco, não se trata apenas de uma filosofia que penaliza mais os rendimentos do
trabalho que os rendimentos do capital mas, para além disso, do facto de haver
inúmeros alçapões estrategicamente colocados na lei e inúmeras situações de
excepção que beneficiam os que mais têm, enquanto os simples trabalhadores não
possuem forma de se esquivar às tributações.
Numa famosa entrevista na televisão no final do
ano passado, o ex-diretor-geral da Autoridade Tributária José Azevedo Pereira
revelou que as 900 famílias mais ricas de Portugal, com património superior a
25 milhões de euros ou rendimento médio anual acima de 5 milhões, representavam
uma percentagem irrisória da receita de IRS, da ordem dos 0,5 por cento, quando
seria de esperar, de acordo com a lei, que pagassem 50 vezes mais. Como o fazem? Exploram
subterfúgios legais, com a ajuda de consultores fiscais dos grandes escritórios
de advogados. Ou desrespeitam grosseiramente a lei, com o maior descaro,
confiando que, se forem descobertos, a justiça para ricos os irá livrar de
qualquer punição.
Esta
sensação de que existem na sociedade portuguesa dois grupos de pessoas, umas
que tudo podem mas que nada devem e outras que pouco podem mas que devem tudo,
a sensação de viver numa sociedade não só injusta mas profundamente corrompida,
a sensação de impotência perante este estado de coisas, desacredita a
democracia, destrói a participação cívica e corrói a sociedade.
É
por isso uma excelente notícia o início de moralização que o governo PS, com o
apoio do BE e do PCP, se propõe levar a cabo no domínio fiscal, com a criação
de um novo imposto (ou, o que seria talvez mais adequado, de uma alteração ao
IMI) para os grandes proprietários de imóveis e do acesso da Autoridade
Tributária à identidade dos detentores das maiores contas bancárias.
No
caso da tributação sobre os imóveis está tudo por definir e é evidente que se
podem e devem discutir todas as questões, de forma a garantir a justiça e eficácia
da lei. Mas o princípio está certo e é justo, por muito que alguns comentadores
se indignem e clamem que se trata de um ataque à “classe média”. A sua reacção
é compreensível. As famílias mais ricas habituaram-se a não pagar impostos, a
mudar as sedes das suas empresas para a Holanda, a pôr o seu património pessoal
em nome de empresas com sede em paraísos fiscais e a usar todas as artimanhas
possíveis para não cumprir as suas responsabilidades fiscais. Mas temos o dever
de tentar pôr fim a essa imoralidade, que sobrecarrega indevidamente todos os
outros.
Os ricos que paguem a crise?
Não. Os ricos que paguem o que devem. Apenas isso.
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