terça-feira, 20 de setembro de 2016

A MORALIZAÇÃO DO DOMÍNIO FISCAL


Não há dúvida de que a direita está órfã do poder e isso é evidente desde há quase um ano, quando, não tendo maioria nas eleições de Outubro, viu a esquerdas unirem-se para construírem uma maioria que desse apoio a um Governo da responsabilidade do PS, que revertesse as políticas de austeridade levadas a cabo pela anterior coligação PSD/CDS. A direita foi apanhada desprevenida porque, em democracia, nunca antes tinha sido possível em Portugal, um governo ancorado à esquerda. A partir daí, deu-se início a uma guerra sem quartel contra a nova maioria, em que tudo passou a valer desde que proporcionasse um desgaste rápido do novo poder. A propósito de tudo e de nada, dia sim dia sim era vaticinado o colapso a “geringonça”. Só que, o sentido de responsabilidade e o esforço de todos aqueles que a ergueram, têm conseguido mantê-la de pé para cumprirem os objectivos a que se propuseram ainda que dentro do espartilho imposto pelas “regras” da UE.
Não é, pois, de admirar que, ao pretender-se acabar com o hábito de as famílias ricas (quase) não pagarem impostos, para se gerarem verbas que apoiem os mais desfavorecidos, a direita faça o alarido que por aí se ouve, usando as mentiras mais descabeladas pois é esse o papel que lhes está destinado na defesa de ricos e poderosos.
O texto seguinte, cuja leitura se recomenda vivamente, é um artigo de opinião com a qualidade a que José Vítor Malheiros nos habituou e onde se apoia vivamente a moralização do domínio fiscal que o actual governo pretende iniciar. O sublinhado é da nossa responsabilidade.
Para assegurar um nível mínimo de coesão numa sociedade, é preciso garantir um mínimo de equidade, um mínimo de regras comuns. Regras que devem abranger todos os cidadãos sem excepção, seja qual for a sua extracção social, nível económico, educação, actividade profissional, local de residência, antecedentes familiares, saúde, cor da pele, género, orientação sexual, ideologia política ou religião.
Sem essa equidade mínima não existe o mínimo de confiança mútua, de respeito pelos outros e de espírito de colaboração que permitem a coexistência e o envolvimento da comunidade em empreendimentos colectivos que promovam o desenvolvimento e o bem-estar de todos.
Para garantir a cooperação de todos, tem de existir uma mutualização de responsabilidades e benefícios, divididos de forma justa, proporcional e transparente.
Em teoria, as coisas funcionam assim nas sociedades democráticas em geral e em Portugal em particular. Mas apenas em teoria. Para além das enormes desigualdades existentes em todos os domínios, que decorrem de situações de partida muito desequilibradas, como o nível socio-económico das famílias (que, num extremo, condena os seus descendentes à pobreza durante gerações e, no outro, lhes garante gerações de privilégios) existem áreas onde a desigualdade e o privilégio de classe é a regra, com as consequências negativas que são de esperar em termos de confiança interpessoal e de confiança nas instituições: essas áreas são a justiça e a fiscalidade.
Digam o que disserem os políticos em campanha e sejam quais forem as promessas e as intenções dos Governos, todos sentimos e sabemos que existe uma justiça para ricos e uma justiça para pobres, da mesma forma que existem regimes fiscais diferentes para ricos e empregados. No domínio da justiça, é evidente que aqueles que possuem meios para contratar bons advogados que exploram todos os buracos das leis e recorrem a todas as manobras dilatórias raramente são condenados e, quando o são, são objecto de sanções simbólicas. No domínio do fisco, não se trata apenas de uma filosofia que penaliza mais os rendimentos do trabalho que os rendimentos do capital mas, para além disso, do facto de haver inúmeros alçapões estrategicamente colocados na lei e inúmeras situações de excepção que beneficiam os que mais têm, enquanto os simples trabalhadores não possuem forma de se esquivar às tributações.
Numa famosa entrevista na televisão no final do ano passado, o ex-diretor-geral da Autoridade Tributária José Azevedo Pereira revelou que as 900 famílias mais ricas de Portugal, com património superior a 25 milhões de euros ou rendimento médio anual acima de 5 milhões, representavam uma percentagem irrisória da receita de IRS, da ordem dos 0,5 por cento, quando seria de esperar, de acordo com a lei, que pagassem 50 vezes mais. Como o fazem? Exploram subterfúgios legais, com a ajuda de consultores fiscais dos grandes escritórios de advogados. Ou desrespeitam grosseiramente a lei, com o maior descaro, confiando que, se forem descobertos, a justiça para ricos os irá livrar de qualquer punição.
Esta sensação de que existem na sociedade portuguesa dois grupos de pessoas, umas que tudo podem mas que nada devem e outras que pouco podem mas que devem tudo, a sensação de viver numa sociedade não só injusta mas profundamente corrompida, a sensação de impotência perante este estado de coisas, desacredita a democracia, destrói a participação cívica e corrói a sociedade.
É por isso uma excelente notícia o início de moralização que o governo PS, com o apoio do BE e do PCP, se propõe levar a cabo no domínio fiscal, com a criação de um novo imposto (ou, o que seria talvez mais adequado, de uma alteração ao IMI) para os grandes proprietários de imóveis e do acesso da Autoridade Tributária à identidade dos detentores das maiores contas bancárias.
No caso da tributação sobre os imóveis está tudo por definir e é evidente que se podem e devem discutir todas as questões, de forma a garantir a justiça e eficácia da lei. Mas o princípio está certo e é justo, por muito que alguns comentadores se indignem e clamem que se trata de um ataque à “classe média”. A sua reacção é compreensível. As famílias mais ricas habituaram-se a não pagar impostos, a mudar as sedes das suas empresas para a Holanda, a pôr o seu património pessoal em nome de empresas com sede em paraísos fiscais e a usar todas as artimanhas possíveis para não cumprir as suas responsabilidades fiscais. Mas temos o dever de tentar pôr fim a essa imoralidade, que sobrecarrega indevidamente todos os outros.
Os ricos que paguem a crise? Não. Os ricos que paguem o que devem. Apenas isso.

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