quarta-feira, 7 de setembro de 2016

DESPENALIZAR NÃO OBRIGA


O “debate sobre a despenalização da ajuda à antecipação da morte quando pedida por pessoa maior de idade em sofrimento devido a doença incurável ou irreversível” deve ter como pano de fundo a ideia de que a penalização, como actualmente prevê o Código Penal “proíbe” mas a despenalização “não obriga”. Neste particular, podemos dizer que há algum paralelismo com a linha seguida relativamente ao que se passou com a lei que despenalizou a interrupção voluntária da gravidez. A única coisa que se pretendia é que os envolvidos não fossem punidos. Para os restantes, a lei não tem qualquer efeito nas suas rotinas de vida.
No que se refere a uma lei que despenalize a ajuda à antecipação da morte, a conclusão é a mesma: despenalizar os envolvidos sem obrigar quem quer que seja a requerer uma morte antecipada assim como o direito à objecção de consciência.  
Neste artigo de opinião que transcrevemos do Público, o seu autor (*) é muito claro naquilo que se pretende, sem qualquer sombra de dúvida, desmistificando toda a demagogia que começa a estar envolvida no debate sobre o tema.  
No debate sobre a despenalização da ajuda à antecipação da morte quando pedida por pessoa maior de idade em sofrimento devido a doença incurável ou irreversível (defendida sem ambiguidades em artigos meus neste jornal, “O horror do absoluto” em Julho e “Em defesa dos cuidados paliativos” em Abril, assim como em textos de outros) temos visto que há quem persista em considerar que é justo condenar à prisão quem, em determinadas condições, satisfaça tais pedidos.
Tal como no passado, muitos confundem o objectivo da despenalização com a bondade do acto a despenalizar. Ou seja, posso não concordar com o recurso à interrupção voluntária de uma gravidez mas não me atribuo o direito de castigar quem o faça, em determinadas condições. No caso presente, posso não satisfazer um pedido de ajuda à antecipação da morte que me seja dirigido mas não me autorizo a punir quem o faça, em determinadas condições. Penalizar, como prevê hoje o Código Penal, proíbe mas despenalizar não obriga.
O argumentário usado pelas partes resvala frequentemente para falácias que todos devemos evitar.
Dizer que modificar uma lei para despenalizar um acto, em determinadas condições, é pôr o Estado a realizar esse acto consubstancia a conhecida falácia do ‘espantalho’ – é deturpar o argumento do adversário para ser mais fácil atacá-lo. Exagerar ou distorcer o que outrem afirma faz parecer que a própria posição é razoável, mas isso no final descredibiliza o debate racional e sério.
Perguntar se o Estado “deve promover a morte dos cidadãos que queiram pôr termo à sua vida” ou “pode decidir que vidas têm ou não dignidade” é utilizar outra falácia – a ‘pergunta capciosa’. A pergunta ardilosa tem uma presunção incluída de modo a que não possa ser respondida sem sensação de culpa. Mas a resposta é claramente: não!
Se, em vez de defendermos a nossa posição, desqualificássemos o opositor à nossa proposta, estaríamos, como foi feito, a recorrer à falácia ‘ad hominem’ e perderíamos a razão.
O Estado que legisla sobre as condições em que tais actos não serão crime não está a promover o homicídio. Dizer isso é ameaçar com a falácia da ‘rampa escorregadia’.
Dizer que os cuidados paliativos conseguem evitar sempre e sempre o sofrimento da pessoa doente é ‘tomar a parte pelo todo’ – outra falácia.
Não creio que se justifique continuar a malhar em ferro frio. Os dados estão lançados. Pressente-se que, na sociedade dos nossos dias, cresce o número dos que concordam com a despenalização da morte ajudada ou suicídio assistido, em determinadas condições.
É hora de os legisladores sentirem essa mudança de perspectiva nos portugueses. Cabe, agora, aos deputados tomarem iniciativas legislativas concretas que definam as condições em que não há lugar a pena de prisão para os profissionais de saúde que, em consciência, procedam com compaixão e evitem somar sofrimento ao sofrimento. O dever de bem assistir à pessoa doente não implica o afastamento do direito à objecção de consciência.
(*) Rosalvo Almeida

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