O
século XX da América latina está pejado de golpes de estado, sob os mais
diversos pretextos mas todos eles com um patrocínio comum evidente: a grande
potência do norte avessa a ver implantada democracia fora das suas portas, em
todo o continente americano, para além do Canadá.
Quando
algum país elegia uma personalidade que não agradasse aos Estados Unidos da
América, era certo e sabido que mais dia, menos dia, seria derrubada pela força
e sempre com um cortejo enorme de vítimas inocentes como que para exemplo
daqueles que tivessem a veleidade de quererem libertar-se das garras de
ditaduras sanguinárias.
Os
tempos mudaram e, pelos vistos, os métodos usados agora também se sofisticaram
com o recurso a interpretações enviesadas da lei para as elites reaccionárias levarem
a cabo a remoção de dirigentes incómodos sem o recuso às botas cardadas dos militares.
De qualquer maneira, a ilegalidade da destituição de Dilma Rousseff é tão
patente que os fautores do golpe no Brasil, grande parte deles a contas com a
justiça, por acusações de suborno, corrupção e outras de idêntica gravidade,
quase não têm fora do país quem queira dar a cara por eles.
O
texto seguinte, da autoria da deputada bloquista Joana Mortágua, muito
apropriadamente intitulado Anatomia do
Golpe, foi transcrito do Público de hoje.
Na
madrugada de 17 de março, o impeachment
de Dilma Rousseff revelou-se ao mundo como uma farsa. Na Câmara dos Deputados,
367 eleitos disseram “sim”, justificando o seu voto com todos os motivos
absurdos pelos quais não se derruba um governo eleito: pelo neto Gabriel, pelos
evangélicos, “para a acabar com a Central Única dos Trabalhadores e os seus
marginais”, pela Ditadura Militar de 1964 e em homenagem ao torturador
Alberto Brilhante Ustra, “que foi o pavor de Dilma Rousseff”.
Nessa
noite ninguém ouviu falar de “pedaladas fiscais”, nem dos tais crimes de
responsabilidade, o impeachment
não passou de um julgamento político feito à margem da democracia decidido por
juízes que são, simultaneamente, autores e beneficiários do golpe,
representantes partidários prontos para ocupar o condomínio do poder depois de
terem despejado o seu legítimo ocupante.
Agora
que o caso “está arrumado”, ouviremos dizer que só à História caberá a tarefa
de ajuizar sobre a injustiça do golpe no Brasil, seja por branqueamento ou
longínqua condenação histórica, como se a história tivesse travado deputados
como Jair Bolsonaro de dizer coisas como “o erro da ditadura foi torturar e não
matar”.
O
golpe no Brasil foi um assalto ao poder para desrespeitar a decisão de 54
milhões de eleitores que votaram num governo, bom ou mau, mas democraticamente
eleito. Por si só, o ato já merece condenação. Mas ainda mais assustador é a
anatomia do golpe: quem e porquê.
Há
duas personagens principais. Eduardo Cunha, o Presidente da Câmara dos
Deputados que aceitou o impeachment,
enfrenta um processo por esconder contas secretas na Suíça, onde guarda o saque
de várias propinas e subornos e tem pendente um mandato de prisão preventiva. O
outro é Michel Temer, ex-vice e atual Presidente, envolvido no Lava Jato.
Estes
misturam-se com a direita evangélica e toda a extrema-direita partidária do tal
Bolsonaro, conhecido por dizer a uma deputada “não te estupro porque você não
merece” ou por garantir que os seus filhos nunca se relacionariam com uma
mulher negra porque “foram bem educados”.
Este
é o exemplo mais chocante da direita que o golpe reuniu e normalizou, parte
dela sustentada aos longo dos anos pela participação em governos do PT, e que
agora se desfez do intermediário para assegurar um governo de “sangue puro” da
elite dominante financeira, industrial e latifundiária do Brasil.
O
golpe é feito por uma direita retrógrada, autoritária, radicalizada contra os
direitos alcançados pelo povo. Numa caricatura humorística, essa elite é
representada pelo “odeio pobre”, a frase mais batida de Caco Antibes,
personagem do famoso programa “Sai de Baixo”.
A
agenda dessa elite é clara: impor um retrocesso social sem precedentes ao
Brasil, que passa tanto pelos cortes sociais, pela lei da selva laboral, como
pela exclusão da chamada “ideologia de género”, ou seja, das palavras género,
orientação sexual, nome social das escolas brasileiras e de qualquer política
pública.
Mas
há outro porquê na anatomia deste golpe, a agenda da impunidade, que ficou a nu
quando Renan Calheiros, Presidente do Congresso, Romero Jucá, Senador e José
Sarney, ex-Presidente da República, que foram apanhados numa gravação em que
elaboravam um plano para travar o Lava Jato, incluindo o impeachment de Dilma.
Este
golpe não se fez só contra Dilma, é um atentado contra todos os avanços sociais
que o PT trouxe ao Brasil. No entanto, a direita alimentou-se do fracasso do
PT, incapaz de manter as mãos limpas, cada vez mais dependente da direita para
governar, que aceitou a recessão como legitimação de políticas de austeridade,
que deixou ao vento as promessas de reforma do sistema político e de
aprofundamento das conquistas sociais.
Com tudo o que sabemos sobre
a anatomia do golpe, é muito provável que a farsa se transforme em tragédia
para o povo brasileiro. E é por isso que não podemos esperar que a História
faça o seu julgamento, nem aceitar as cumplicidades que, também na direita
portuguesa, o legitimaram. O julgamento do golpe cabe-nos a todos, democratas
de qualquer país. Mas a sua condenação cabe ao povo brasileiro na luta pelos
seus direitos, uma tarefa do presente.
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